O jornalismo negro emergiu como engajamento afetivo (Gomes e Mendonça, 2024),
para mim, quando descobri os textos de Clóvis Moura (1984) sobre a imprensa negra, no
segundo período de graduação em jornalismo. Encontrei ali meu modo de estar e me situar na
universidade e no jornalismo. A questão para mim era/é de transformação. Não queria estudar
jornalismo negro apenas como uma militância, como falavam, mas na sala de aula, na
comunicação, na cotidianidade, na política e no movimento negro. Diante de uma série de
incômodos que vivenciei durante a universidade e no próprio jornalismo, seja pela
discriminação racial, ausência de referências e bibliografias negras em sala de aula e pelas
demais vivências de mulher negra, culminou que eu escrevesse primeiro sobre jornalismo
negro. Assim, compreendo a minha história no jornalismo como um território de vivências
que fundamentam também a importância de abordar o tema da minha pesquisa, essa
experiência, então, atua como força ativa e afetiva (Gomes, 2023, p.45).
No Brasil, há diversas concepções sobre o campo de estudos da imprensa negra. Para
Muniz Sodré (1999, p. 241), “a imprensa negra reflete os protestos e as esperanças dos
descendentes de africanos”, e Ana Flávia Pinto (2006) parte de uma perspectiva de que “são
os jornais que se inserem na luta contra a discriminação racial no Brasil”. Apesar de abraçar
esses entendimentos, por partirem de grandes estudiosos da imprensa negra na área da
comunicação, modifico a terminologia para jornalismo negro, e o compreendo como aquele
produzido por/para/sobre a população negra, em geral, com relação aos movimentos negros.
Utilizo, desse modo, como base, a minha pesquisa de mestrado, que conceitua tal jornalismo e
apresenta dados de cerca de 180 jornais negros na história da imprensa brasileira. Com isso,
agrupo os jornais negros dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI e sistematizo como um
jornalismo específico e silenciado pela instituição jornalística. Opto por utilizar essa
definição, por entender que, apesar do termo “Imprensa” ser um vocábulo do jornalismo, ele
tem um significado que pode abranger somente jornais impressos, além de não trazer a
discussão em torno do modo, estudo e tensionamento do fazer jornalístico.

Fotomontagem por Adrielly Kilryann/Jornal da USP
Entendo que os jornais negros possuem características próprias desse modo de fazer
jornalismo, que vão para além da composição das redações por pessoas negras, haja vista que
importam os discursos político-raciais, suas fontes, linguagens e como são pautados os
assuntos. O intuito da pesquisa do doutorado é continuar um aprofundamento sobre os jornais
negros que estão interligados a territórios/instituições políticas e culturais dos movimentos
negros, para pensar em um modo de construção jornalística quilombista (Nascimento, 1985),
que disputa e tensiona o fazer jornalístico hegemônico. Outrossim, há o propósito de
aquilombar a relação com a história do jornalismo no Brasil e, por conseguinte, trazer uma
apresentação do jornalismo negro na América afro-diaspórica. Isso posto, me engaja o modo
organizativo de como a população negra na diáspora americana encontrou o jornal como uma
ferramenta de expressão das suas reivindicações. O Jornalismo Negro no Brasil, então, se
iniciou pela auto-organização e na luta por liberdade e cidadania da população
afrodescendente, reivindicações que persistem até a atualidade em modos e contextos
diferentes, que por vezes atua na conformação da instituição jornalística.
Para Grossberg, afeto é “algo que organiza, disciplina, mobiliza e coloca nossa
atenção, volição, humor e paixão a serviço de agendas específicas” (1992, p. 255). Assim,
compreendo que o afeto me mobiliza na construção dessa pesquisa, mas, por outro lado,
identifico que o afeto também é uma força mobilizadora do jornalismo negro. Amanda
Barbosa explica que “o pertencimento a determinados grupos sociais e a mobilização pelas
questões e temas que eles articulam não se dá apenas por um processo de ‘cognição’, mas
porque somos mobilizados (inclusive) de modo afetivo” (2024, p.42). Entendo que a noção
de engajamento afetivo é necessária, pois “leva em conta os afetos engajados no processo
cultural: porque eles dizem das disputas e tensionamentos que parecem ser vividos no
âmbito individual, mas, na realidade, são compartilhados, políticos e coletivos” (Barbosa,
2024, p.42).
Ademais, entendo que a discussão afetiva é negada em uma perspectiva hegemônica
de jornalismo, que enfatiza conceitos que apagam as subjetividades e suas expressões, como
as raciais. Esse apagamento é ampliado pela descaracterização e exclusão do jornalismo
negro na instituição jornalística. Desse modo, também, destaco a pretensão de compreender
metodologicamente como a raça tensiona o jornalismo e como o jornalismo é tensionado
pelas racialidades, em uma perspectiva fundamentada por Stuart Hall, a qual Grossberg
explica (2010, p.25): “nunca trabalhei sobre raça e etnia como uma espécie de subcategoria.
Sempre trabalhei toda a formação social que é racializada.” Para Hall (2003), a raça não é
um recorte ou uma questão somente negra, ele entende que a nossa sociedade é racializada.
Portanto, esse é um ponto de partida que enxergo para a análise da história do jornalismo
negro.
É necessário compreender que “a constituição das mídias não é de base
exclusivamente tecnológica, mas sociotécnica – são parte dos modos como se dão as
relações entre tecnologia e cultura, uma tecnocultura ”(Gomes e Antunes, 2019, p.13-14).
Nessa perspectiva, é possível conceber que a importância do jornalismo negro está para
além de seu formato, mas por ser criado e pautado para a população negra e na colaboração
para uma cultura diversa com perspectivas étnicas-raciais. Portanto, a partir dos autores,
entendo que a ótica de comunicação não está atrelada apenas ao técnico, mas em dar ênfase
a “uma cultura que alimenta e é alimentada por um complexo de práticas midiáticas e
organiza instituições cruciais da sociedade contemporânea” (Gomes e Antunes, 2019, p.14).

Assim, observo ser um trabalho urgente, do campo da comunicação, estabelecer
construções práticas e epistemológicas que pensem raça, não somente aquelas que objetivam
abordar o racismo. É necessário, portanto, que, assim como pensado por Stuart Hall (2000),
a racialidade seja observada contextualmente em nossos estudos. Do mesmo modo, é sabido
afirmar que a racialidade, assim como a etnicidade, encontra diversas barreiras na academia
por conta da colonização, que inferioriza os sujeitos negros e indígenas, como não
detentores de conhecimento e até mesmo na retirada de sua humanidade. Por isso, é
importante considerar acerca da: “necessidade urgente de se fazer com que as expressões
culturais, as análises e histórias negras sejam levadas a sério nos currículos acadêmicos”
(Gilroy, 2001, p.40).
A consideração explicitada se faz essencial tendo em vista que o jornalismo negro
acontece na América há cerca de 200 anos e há pouquíssimos estudos sobre esses
jornalismos nas universidades brasileiras. Por exemplo, em minha pesquisa de mestrado,
foram analisadas todas as graduações em jornalismo nas universidades federais do Brasil
acerca da inclusão de estudos sobre o jornalismo negro. Como resultado, somente uma
mencionava “imprensa negra” em seus projetos políticos pedagógicos, grades curriculares e
ementas das disciplinas, e pouquíssimas universidades abordam questões raciais durante o
curso de jornalismo. Desse modo, é um compromisso dos estudos de comunicação
colaborarem para o jornalismo negro não ser esquecido nas academias. Com isso, apesar de
acreditar na transformação pela auto-organização e nos projetos de liberdade negra
demonstrados também no jornalismo negro, não isento espaços hegemonicamente
constituídos pela branquitude, como a academia e a instituição jornalística, da sua
responsabilidade na transformação.
bell hooks (2017) discute a necessidade de repudiar as dominações coloniais em
nossos estudos. Esse repúdio é uma ferramenta para que possamos pesquisar áreas que são
esquecidas dentro dos estudos de comunicação, como também reivindicar as análises
contextuais, que pensem raça, etnicidade, gênero em todos nossos estudos. Desse modo,
podemos criar e fundamentar teorias que amem a negritude como resistência política (hooks,
2019, p.39). Então, assim como bell hooks relata, no capítulo “A teoria como prática
libertadora” (2017), que chegou na teoria de forma machucada, encaro esse meu processo
vivenciado no jornalismo como uma dor e, nas palavras dela, como “uma imposição de
silêncio que ocorre em instituições onde se diz às mulheres negras e de cor que elas não
podem ser plenamente ouvidas e escutadas porque seus trabalhos não são suficientemente
teóricos” (2017, p.95). Todavia, hooks também afirma que a teoria pode ser um lugar de
cura e libertação quando a dirigimos para esse fim (2017, p.86).
Por isso, compreendo que, apesar de as produções jornalísticas negras por vezes
conformarem formatos e reforçarem práticas defendidas pela instituição jornalística, elas
não são somente uma reprodução dos modelos padrões do jornalismo com a inclusão de
pautas raciais. Ao observar suas histórias e veículos, entendo que o jornalismo negro
tensiona a instituição jornalística e atua também na criação de diversos modos do fazer
jornalístico, por exemplo, com expressões de auto-organização quilombista. Portanto, o
afeto me motiva a pensar em histórias que não são contadas e me incentiva a transformar as
teorias em práticas libertadoras (hooks, 2017).

Jornal ‘O Homem de Cor”, 1833, Tipografia Fluminense.
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