No dia 19 de maio de 2017, a plataforma digital Netflix lançou seu primeiro documentário brasileiro. Dirigido por Lygia Barbosa da Silva e pela jornalista Eliane Brum e produzido pela Tru3Lab, Laerte-se retrata de forma íntima as nuances da vida de uma das maiores cartunistas e chargistas brasileiras, Laerte Coutinho.

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Primeiro documentário brasileiro da Netflix, Laerte-se foi lançado em maio de 2017 / Foto: Divulgação Netflix

O documentário, filmado na casa da cartunista, funciona principalmente como introdução à figura de Laerte. Bilhetes fixados na parede com metas a cumprir em relação ao corpo, ao trabalho e a casa dão uma pista dos temas que se destacam no filme, ainda que, inegavelmente, a sua vivência trans adquira uma centralidade no documentário. A ideia é mostrar um devir que se expressa na vida de Laerte nesses três âmbitos de maneira articulada. Mas, se a obra nos fornece muitos elementos sobre uma vivência feminina permanentemente em construção e uma casa eternamente provisória, a dimensão de processo na sua criação artística tem pouco destaque no filme. Como se partissem do pressuposto de que o público já conhece bem o trabalho da cartunista, as realizadoras optaram por intercalar parte das falas de Laerte com algumas tirinhas. O que, por vezes, dá a sensação de uma quebra no ritmo da narrativa.

Ao mesmo tempo em que o documentário adere a uma narrativa mais cronológica, ao começar abordando a relação de Laerte com os pais, com vídeos e fotografias que a retratam da infância até a vida adulta já na faculdade, ele também adota uma circularidade quando os temas em jogo são a casa, a atuação profissional, o corpo e a subjetividade da cartunista. Escolha que, se por um lado, entra em sintonia com a maneira como Laerte está vivenciando esses elementos, por outro, deixa no espectador a sensação de que a obra está se estendendo e se tornando um tanto repetitiva. Impressão que a própria Laerte expressa no filme, ao perguntar à Eliane Brum se ela não está retornando aos mesmos temas.

De toda forma, há também um esforço das realizadoras de abarcar um pouco dos variados aspectos da vida de Laerte: a relação com os pais, com os filhos, com o neto e a vizinhança; suas dinâmicas de criação artística; a ocupação no Itaú Cultural em 2014 – que marcou seus 40 anos de carreira –; seus posicionamentos políticos; a relação com a militância LGBT; o que significa para ela se tornar uma pessoa pública; a sexualidade.

Nós acompanhamos os processos de uma casa em reforma. Coisas amontoadas, guardadas em caixas de papelão, mesa da cozinha coberta de livros. Em alguns momentos, ela parece estar organizada, mas logo em seguida se desorganiza novamente. “Minha casa é inadequada. E por extensão, eu sou inadequada”, diz Laerte no vídeo. Essa analogia entre a casa e o corpo e o processo de transição entre gêneros pelo qual a artista passa é um dos pontos altos do filme. A casa não está pronta, está sempre em processo, assim como Laerte.

A comparação se estende para o seu trabalho. Ela expõe incertezas e inseguranças em relação à qualidade de suas produções, às premiações que recebeu ao longo da carreira e ao reconhecimento dos colegas de profissão. Para Laerte, corpo e desenho nunca estão resolvidos para todo o sempre. Daí a cartunista relatar a sensação de incompletude ao ver a ocupação no Itaú Cultural, como se não houvesse ali uma obra completa. Argumentando que tornar-se profissional pode funcionar também como uma construção de limites e jaulas, a artista busca constantemente por mudanças na forma de se expressar, retomando inclusive processos de criação anteriores à profissionalização do seu trabalho.

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“Quando eu virei a Laerte, ele também virou a Muriel” / Imagem: Reprodução – Laerte

O filme mostra o exercício de uma feminilidade que, de acordo com a cartunista, foi tornada pública a partir de uma matéria veiculada na revista Bravo! de setembro de 2010, mas já era vivenciada de modo mais contido desde 2004. A cartunista argumenta que, ainda que todos estejam sujeitos às normas de gênero, a opressão incide sobre as pessoas trans de modo específico e gritante. Nesse sentido, ela não se considera uma pessoa corajosa, como muitos dizem, por ter bancado seu desejo com quase 60 anos, pois, em sua opinião, a carreira consolidada e a família acolhedora a impediram de vivenciar a brutalidade que faz parte da rotina de muitas pessoas trans.

Mas, por outro Lado, Laerte ressalta que a opressão também pode partir das pessoas trans quando ocorre a imposição de um modelo de transgeneridade – o estabelecimento de uma identidade inegável que só pode ser partilhada por aquelas pessoas que portam um conjunto de características verificáveis. Assim, o corpo, que não é deixado de lado, mas também não resume a experiência trans, se torna parte de uma negociação complicada. Complexidade que, no documentário, se expressa por meio de uma discussão sobre implante de silicone nos seios.

O jogo entre querer, precisar, poder e dever, no qual Laerte está enredada, inspira uma reflexão sobre como nossos desejos se articulam e negociam com as normas de gênero. Por um lado, mesmo reconhecendo que é factível ser uma mulher sem seios, ela sente um vazio quando se despe do sutiã com enchimento. Por outro, ela percebe que fazer o implante significa também atender a uma expectativa social de que ter peito torna a pessoa pertencente ao universo feminino.

A partir da defesa de que as pessoas não deveriam obrigatoriamente se assumir como mulheres ou homens, Laerte entende sua experiência como uma ampliação de fronteiras. O que para ela significa identificar, dentro do universo das coisas que são oferecidas às mulheres, o que lhe serve. “Estou fazendo uma investigação da mulher que eu posso ser. Tenho aprendido que é possível ser mulher com a minha genitália”, diz a cartunista.

No entanto, na obra, a potência das concepções de gênero defendidas por Laerte concorre com certa curiosidade a respeito das particularidades e pormenores dessa experiência feminina, que alcança seu nível mais superficial com uma menina que interpela Laerte durante a ocupação no Itaú Cultural tão somente para perguntar qual o batom que ela usa, mas que também se expressa na maneira como o documentário se estrutura. De modo que esse cotidiano feminino particular ocupa parte significativa do filme. O público acompanha Laerte fazendo as unhas, depilando-se, experimentando vestidos, meia-calça e saltos, penteando os cabelos longos, maquiando-se e comprando roupas no brechó. De qualquer forma, o que fica do filme, como uma marca impactante, é o desejo de que homens e mulheres sejam verbos e não substantivos.