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Divulgação/Rede Globo

O dicionário é popularmente conhecido, no Brasil, como o “pai dos burros” em uma clara referência ao fato de que ele é o livro ao qual todos recorrem quando não sabem o significado de uma palavra. Por conter em si um inventário do vocabulário da língua e as definições de sentidos convencionadas além de outras informações gramaticais e ortográficas, o dicionário é também um símbolo da cultura letrada, do ensino formal e da língua culta. Em Conversa com Bial, o programa de entrevistas de Pedro Bial que estreou em maio deste ano na Globo, um dicionário meticulosamente posicionado em cima da mesa ocupada pelo entrevistador, vez ou outra, ganha o primeiro plano da cena.

Ainda que não seja um elemento central do cenário, a aparição constante do dicionário parece dar pistas importantes sobre a nova atração: Conversa com Bial tem, sobretudo, um tom de didatismo quase paternalista em alguns momentos, seja no modo de tratamento dos convidados, seja no modo de endereçar-se ao público. Na edição de 25 de julho, em que recebeu a cartunista Laerte, Bial apresenta a sua entrevistada abordando aquele que parece ter se tornado o principal assunto a seu respeito, seu processo de transição de gênero: “Se ela se vê assim, a gente vê como ela vê o Brasil e o mundo há mais de quatro décadas. Cartunista, reconhecida mundialmente, mais de vinte livros publicados, presença diária em jornais, na internet, ativista e apresentadora de tevê. Mas ela é isso tudo há pouco tempo, só sete anos. Isso porque ela foi ele até os cinquenta e oito anos de idade.” Logo de cara, pergunta: “Me avisaram pra eu não me atrapalhar, pra eu tomar cuidado para não me atrapalhar, com o gênero, não misturar ele com ela, isso é um problema pra você?”

A resposta de Laerte é de que “sim e não porque às vezes isso indica um desrespeito”. Mas, apesar de Bial dizer que tentará ser espontâneo porque “se a gente fica se preocupando muito em ser correto…”, ele parece o tempo todo preocupado em traduzir o que diz, em deixar claro o que aborda, em fazer o público entender o que significa um processo de transição de gênero, por exemplo. Isso, na maior parte do tempo, é feito a partir de uma performance que apela para uma falsa espontaneidade ou simplicidade que, por vezes, se aproxima do desrespeito com quem está sendo entrevistado.

Esse mesmo didatismo que, por vezes, assume uma postura paternalista e expõe contradições do entrevistador – como ele considerar que respeitar a identidade de gênero significa ser “muito correto” – pode acabar, em outras situações, apagando nuances importantes dos seus entrevistados. É assim, por exemplo, na entrevista exibida no dia 05 de maio com o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, apresentado no programa por Bial e dois convidados que comentam a entrevista – a correspondente internacional Adriana Carranca e o músico e escritor Vitor Ramil – como “um conciliador”, “quase um fenômeno pop para a juventude”, esmaecendo a centralidade que o socialismo tem para seu entrevistado.

O prestígio que Pedro Bial adquiriu em uma carreira promissora como repórter da Globo desde 1981 é, certamente, o grande trunfo do programa, o que lhe permite ter entrevistados também de prestígio. Só na semana de estreia foram entrevistados a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, a cantora Rita Lee, a ginasta Laís Souza, o cientista Miguel Nicolelis, e Mujica. Na segunda edição do programa, em 02 de maio deste ano, a trajetória de Bial é convocada de cara: é a cabeça de uma entrevista sua nos anos 80 que abre o programa apresentando a entrevistada do dia, Rita Lee. São a fala de Rita nesta entrevista e um gancho sobre sua autobiografia que pautam perguntas sobre as memórias da cantora. A certa altura, Bial fala: “Mas nessa transgressão, você acabou, em alguns lados, enfim, por temperamento, por cérebro, cê pegou pesado, a gente tava falando das drogas, né? Vamos falar um pouquinho de cada uma, ver a sua relação, maconha que hoje é uma questão…”.

A pergunta de Bial abre espaço para uma conversa sobre um tema considerado tabu no Brasil, mas é a resposta da entrevistada que surpreende e cria um grande momento na entrevista: “Ah, você vai falar de maconha? Eu pensei que você fosse falar de café, coca-cola, açúcar, álcool”. Essa não é uma exceção. Bons entrevistados, contudo, podem render bons momentos a partir de perguntas ruins. É o caso do filho de Laerte, Rafael Coutinho, que ao ser perguntado sobre quando descobriu que o pai era um quadrinista, um artista famoso, respondeu como quem debocha em tom solene: “eu tinha dois anos de idade (…)”, levando todos à gargalhada. Contudo, nesses momentos, a primeira grande qualidade de Bial como entrevistador se destaca: ele sabe dialogar e abrir espaço para o entrevistado, deixar que ele brilhe na cena.

Sua segunda grande qualidade surge em seguida: é um entrevistador que não parece evitar temas, fala em maconha e LSD encenando a mesma naturalidade com que fala da horta e do cotidiano de sua entrevistada. Nesse sentido, Bial parece fazer par com outros entrevistadores e apresentadores de talk e late shows no Brasil – em especial os mais recentes, como Danilo Gentilli, Fábio Porchat e Gregório Duvivier. Todos parecem buscar, ao mesmo tempo em que abrem espaço para seus entrevistados, se posicionar sobre temas que estejam em debate. Não são poucas as referências em diversas edições do programa sobre a situação política pela qual passa o nosso país, com o apresentador externando seu ponto de vista, como na edição do dia 07 de julho, em que ele entrevistou os atores e cantores Seu Jorge e Paulo Miklos, e fez um longo preâmbulo para finalizar com uma questão: “Aqui a gente, queria incluir o Paulo, porque o Paulo tem sempre um posicionamento político muito claro, marcante, e, nesse momento de polarização chucra, pra não dizer burra, em que tá encalacrado o debate público brasileiro, por onde você vê uma saída, Paulo? […] Você se situa onde nessa polarização? É, porque hoje tem golpistas e não-golpistas, coxinhas e petralhas”, mesmo que o tema inicial para juntar os dois artistas tenha sido o fato de atuarem e cantarem.

É nesse espaço adquirido por Bial, com essas duas qualidades fortemente presentes em sua trajetória como jornalista, que o Conversa com Bial tem construído elementos importantes do seu endereçamento. Importante ressaltar que Conversa com Bial ganhou espaço na grade de programação da emissora em substituição ao Programa do Jô, que ocupou a mesma faixa horária durante os 16 anos anteriores. O tom de didatismo, que marca de modo tão forte no Brasil a tradição inaugurada por Jô Soares e que sugere a valorização de uma cultura letrada, perdura no programa analisado e parece fazer escola, como sinaliza Paula Janay em seu texto sobre o Greg News publicado aqui no TRACC. Bial, em sua entrevista com Rita Lee, diz, elogiando a escrita de sua entrevistada e em tom de lamento, que chegar ao simples às vezes é muito complexo. Talvez, se desacreditasse na complexidade enquanto uma pseudo-forma para suas entrevistas, o seu Conversa com Bial fluísse melhor.