(Contém spoilers)

Créditos: Divulgação
Em um futuro utópico/distópico (Borges, 2022), o Estado brasileiro possui um programa chamado O Futuro é Para Todos em que idosos são recolhidos por uma espécie de carrocinha “cata-velho” para serem levados de volta para casa ou serem postos obrigatoriamente em uma colônia que garantiria para eles uma “vida digna”. Enquanto as pessoas idosas são retiradas do convívio social para não atrapalharem a produtividade econômica, seus parentes ganham o direito de administrar seus bens e um avião corta o céu da paisagem amazônica afirmando o nome do programa “O Futuro é Para Todos”. Esse cenário utópico/distópico é a premissa principal de O Último Azul, mais novo filme de Gabriel Mascaro (com roteiro de Tibério Azul) que acaba de estrear nos cinemas brasileiros.
Nesse texto recorro à dupla utopia/distopia mobilizada por Borges (2022) para tensionar esse caminho progressista para o futuro onde os idosos não têm espaço a não ser em colônias que os retiram das cidades e das vistas “das pessoas produtivas”. Mesmo que essas pessoas, como Teresa, personagem interpretada por Denise Weinberg, estejam trabalhando até o dia em que são comunicadas pelo Governo que também devem ser colocadas num desses abrigos. A ideia de uma utopia/distopia significa dizer que esse futuro mostrado pelo filme é sim desejo utópico de alguns, ainda que represente para mim uma distopia. Afinal não estamos tão longe assim do mote “a economia não pode parar” que marcou o discurso do governo Bolsonaro durante a pandemia de 2020 e que ressoava sobre as valas coletivas para enterrar pessoas que morreram contaminadas pela covid-19.
O Último Azul me pôs nessa encruzilhada de pensar contextualmente (Grossberg, 2010) sobre que brasis são esses que o filme me deixou ver a partir do jogo utopia/distopia. Faço um exercício breve sobre ser esse Brasil que, como eu disse acima, não quer parar, mesmo que para isso pessoas morram contaminadas por um vírus e sejam enterradas em valas. Em sua maioria, pessoas idosas e pobres, vistas como descartáveis por um mercado e uma elite que têm fome e sede de produção e lucro. Subjugadas por ideias de desenvolvimento e progresso que não podem ser detidas, mesmo que estejamos todos ameaçados pela extinção que se anuncia a partir das mudanças climáticas e suas consequências. Ainda assim, não revimos ideias hegemônicas sobre modelos de desenvolvimento e progresso. O futuro dito pela propaganda do governo em O Último Azul estabelece um todos que deixa de fora exatamente os mesmos descartáveis que vimos na pandemia. Se os idosos são os alvos preferenciais do recolhimento forçado, o filme também mostra pessoas pobres que se submetem à trapaça, à caguetagem, ao jogo e às apostas na esperança de terem uma vida melhor. Alguma solidariedade se apresenta no caminho de Teresa, como também têm nos mostrado os brasis que escapam da sanha individualista que marca o Brasil que não pode parar.
Vimos vários personagens se submeterem à lógica da produtividade, até que Teresa rompe o destino determinado para ela e, em uma road movie que troca as estradas pelos rios amazônicos, pega suas economias e vai atrás do sonho de voar. Perguntada o porquê de nunca ter voado, ela responde que nunca havia tido tempo, já que tinha que trabalhar e cuidar da filha. Ao envelhecer, entretanto, parecia que esse sonho tampouco seria uma possibilidade, até que ela resolve se aventurar. E aí o filme torce também algumas das imagens que temos sobre idosos. Em vez da velha frágil tantas vezes colocada como imagem no audiovisual e nas nossas compreensões sobre o envelhecimento, vemos uma pessoa ativa, senhora do seu destino. E que não emula juventude para realizá-los. Seus cabelos estão completamente brancos e vemos que há sim certas limitações para ela acarretadas pelo passar dos anos, mas isso não a impede de ter desejos, sonhos e de se movimentar para realizá-los.
No jogo utopia/distopia, esse lugar da velhice que O Último Azul oferece rompe com a narrativa distópica/utópica que pretende restringir pessoas idosas a colônias e se aproximar de uma utopia/distopia em que não é tarde para que possamos, enfim, alcançar nossos desejos, apesar dos limites colocados pelo mercado, pela família, pelo governo, por certa ideia de produtividade, progresso, modernidade e desenvolvimento. Rompimento esse que é demarcado narrativamente pela virada que ocorre quando Teresa pinga o líquido azul do caracol em seus olhos e isso, em vez de cegá-la, abre novos horizontes, em que ela não precisa mais trabalhar, nem se submeter às imposições da filha, do mercado e do governo. Ela passa a correr livre pelo rio amazônico, que adquire a metáfora da vida-curso das águas que têm margens, mas não se submetem. Ao, finalmente, deixar de ver o futuro que havia sido determinado e imposto para ela (a certa altura do filme ela pergunta “E velha lá tem futuro?”), Teresa pode, enfim, encontrar outras possibilidades, desejos e amores a serem vividos enquanto tiver(mos) vida, colocando a velhice não como fim ou passado, mas sim como começo e outros futuros.
Referências
Borges, Felipe. Sinais do amanhã: Imaginação e ética em ficções audiovisuais sobre o futuro. 2022. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais, 2022.
Grossberg, Lawrence. Cultural Studies in the Future Tense. Durham/London: Duke University Press, 2010.