
Créditos: IMDb / Divulgação
Esta não é exatamente uma crítica do filme Sinners (Pecadores, no Brasil), mas, antes, um breve comentário a partir de uma das diversas cenas da obra que colocam a música na centralidade da experiência afrodiaspórica. Lançado em 2025, o longa original escrito e dirigido por Ryan Coogler é difícil de categorizar, mas foi anunciado como um filme de terror ambientado na década de 30 na região do Delta do Mississippi (Estados Unidos). A cena1 que quero explorar aqui é a que mostra três personagens centrais da trama, homens negros de diferentes idades, seguindo de carro na estrada para a noite de estreia de uma casa de shows comandada pelos gêmeos Smoke Stack Brothers. Eles passam por trabalhadores negros que sincronizam o ritmo de suas enxadas com suas vozes, cantando. Logo depois, no carro, Delta Slim (Delroy Lindo), um músico experiente do sul dos Estados Unidos, conta para Sammie (Miles Caton) e Stack (Michael B. Jordan) a história de seu amigo Rice, que tocava blues com ele. Em certo momento, conseguiram fazer um show para pessoas brancas que os pagaram bem. Delta Slim conta que gastou os ganhos com a bebida, mas Rice resolveu investir em uma igreja em outra cidade. Ia pegar um trem para o seu destino, mas foi emboscado pelo condutor do trem e pela KKK – que acharam o dinheiro em seu bolso e o acusaram de roubo e estupro, e o lincharam na estação. Neste momento, ouvimos uma voz agonizando ao fundo. Delta Slim se emociona com a memória do amigo, vocalizando lamentos com resmungos gemidos. Bate algumas vezes na perna, continua a lamentar. Bate repetidamente o pé, continua a lamentar. Balança o corpo e batuca no carro, continua a lamentar. Seu gemido entra no ritmo; a lamentação continua mas agora já é música.
O primeiro ponto de atenção nesta cena é a forma como ela aborda a relação entre trabalho e tempo, marcadamente o tempo musical. Em Cosmopoéticas do Refúgio, escrevendo sobre o coumbite no Haiti, Bona afirma que “é pelo ritmo que se transmite e se reinventa a tradição das sociedades de trabalho africanas” após a liberdade conquistada do sistema colonial (2020, p. 21). Ainda que estejam tratando de contextos sócio-históricos muito diferentes, as semelhanças na forma de trabalhar a terra através da marcação musical descritas no livro de Bona e encenadas em Sinners são notórias e dizem, justamente, de rearticulações de modos de vida africanos no continente americano. Preocupado com o fenômeno das comunidades marrons, Bona cita Jacques Roumain para mostrar como lavradores haitianos trabalhavam juntos a terra, em comunidade, acompanhados pelo tambor e/ou pelo canto dos trabalhadores: “O acompanhador Antoine passava a tiracolo a bandoleira do tambor […]. Antoine preludiava com umas curtas pancadas; depois o ritmo crepitava sob seus dedos. Num impulso unânime, eles erguiam as enxadas” (Roumain apud Bona, 2020, p. 22). Bona segue com o texto do haitiano, do momento em que as enxadas estavam todas no ar, o ferro a reluzir:
A voz do acompanhador subia rouca e forte:
– a té…
De um só golpe, as enxadas caíam num ruído surdo, atacando o pelame malsão da terra. […] Os homens avançavam em fila. Sentiam em seus braços o canto de Antoine, as pulsações precipitadas do tambor, como um sangue mais ardente. […] Uma circulação rítmica se estabelecia entre o coração palpitante do tambor e o movimento dos homens […]. (Roumain apud Bona, 2020, p. 22)
Assim, podemos encarar, tanto com os textos de Bona quanto com o filme de Coogler, o ritmo como modo de organização social das comunidades negras. Neste sentido, a “tradição do trabalho dançando e cantando”, escreve Bona, “assumiu, no sul dos Estados Unidos, a forma das work songs, matriz do blues. Trabalhar junto é partilhar uma pulsação coletiva, vibrar em uníssono, comungar num só canto” (2020, p. 23). Trazendo para os estudos culturais, essa cena de Sinners consegue expressar a forma como a estrutura econômica de exploração das pessoas negras e pobres no sul dos Estados Unidos, no momento da formação e consolidação do blues, está articulada às formas de sentir dessas populações – os meios de produção são determinantes mas não são deterministas –, aos seus modos de viver de que fala Williams com a estrutura de sentimento, hipótese cultural que tenta dar conta da “maneira como vivemos, cada um de nós, individualmente, mas sempre de modo profundamente social” (Gomes, 2011, p. 38). Então, investigando formas culturais de comunidades racializadas, que marcadamente têm o corpo como pilar do conhecimento e da memória, sugiro, seguindo Gutmann (2021, p. 84), articularmos estrutura de sentimento a performance.
Leda Maria Martins afirma que performances dizem dos saberes corporificados, nos lembrando que negros e indígenas eram indesejados no projeto de modernização do Brasil porque representavam o “primitivo”, animalesco, não-civilizado: “A noção de um tempo que se expressa pela sucessividade, pela substituição, por uma direção cujo horizonte é o futuro marca as teorias ocidentais sobre o tempo e a própria ideia de progresso e de razão da modernidade” (Martins, 2021, p. 25). E,
Apesar de toda a repressão, o que a história nos ostenta é que, por mais que as práticas performáticas dos povos indígenas e dos africanos fossem proibidas, demonizadas, coagidas e excluídas, essas mesmas práticas, por vários processos de restauração e resistência, garantiram a sobrevivência de uma corpora de conhecimento que resistiu às tentativas de seu total apagamento. (Martins, 2021, p. 35)
Martins, muitas vezes, ancora suas análises e propostas sobre performance na ideia de ancestralidade – a repetição e iteração da performance acontece por um movimento espiralar ancestral das populações/fenômenos que estuda. Ela afirma que a ancestralidade “pode ser concebida como um princípio filosófico do pensamento civilizador africano” (Martins, 2021, p. 60), sendo também o meio pelo qual a “força vital” pode se espalhar pelo mundo e pelo cosmos (ibid.). Assim, “Como princípio do sagrado que habita toda a criação”, essa força ou energia vital “é tanto uma categoria abstrata que se magnifica em tudo o que existe, assim como uma potência que se materializa nas mais ordinárias relações do cotidiano” (Leite apud Martins, 2021, p. 60).
Especialmente em organizações sociais que não se baseiam na palavra escrita para a salvaguarda da memória, é através do corpo – do repertório – que saberes são transmitidos e identidades são reafirmadas. Se “dançar é performar, inscrever”, podemos pensar a dança como “uma grafia, uma corpografia. Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas e as indígenas, o corpo é, por excelência, local e ambiente da memória” (Martins, 2021, p. 89).
Essa peculiar forma de expressão, que encontra no corpo seu veículo exponencial, ainda que não exclusivo, de linguagem, apoiada numa intrínseca e não dissociável relação entre o som, o gesto e os movimentos corporais, reveste o corpo de muitos saberes, entre eles suas rítmicas e vocalidades, bordando visualmente no ar a palavra, a música e os vocalises, imprimindo assim uma qualidade pictural às sonoridades, nelas desenhando e gravando as espirais do tempo. (Martins, 2021, p. 89)
Então, se estrutura de sentimento diz de como é estar vivo em um tempo e lugar, podemos articulá-la à ancestralidade (nos termos de Martins) quando pensamos em gêneros/cenas musicais nascidos a partir das comunidades negras americanas, voltando o nosso olhar para a performance para dar conta de fenômenos culturais negros. A vida vivida a partir das negritudes parece se mostrar melhor, a nós, quando tentamos apreendê-la pelo que o corpo anuncia. Talvez por isso eu tenha gostado tanto de Sinners: aqueles movimentos, vocalizações, danças, histórias, expressões, modos de trabalho; aquele cotidiano vivido não aparece na tela como inédito, apesar do longa ser uma história original. Aparece como iteração, como comportamentos restaurados, como tempo espiralar.
1 a cena (ainda) está aqui: https://www.youtube.com/watch?v=OuOhvMFfXQ0.
Referências
Bona, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do Refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.
Gomes, Itania Maria Mota. Raymond Williams e a hipótese cultural da estrutura de sentimento. In Gomes, Itania Maria Mota e Janotti Jr, Jeder (Orgs). Comunicação e estudos culturais. Salvador: EDUFBA, 2011.
Gutmann, Juliana Freire. Audiovisual em rede: derivas conceituais. Belo Horizonte: UFMG, 2021.
Martins, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.