Super heroínas… Drag Queens!

Ao longo do histórico das animações, que já ocupam nosso imaginário há mais de um século, ainda vemos uma escassez quanto à utilização de narrativas LGBTs [1]  com protagonismo e sem mascarar suas personagens. “Super Drags” (2018), neste ponto, é uma das poucas animações que abordam as identidades dessas personagens, especificamente as drag queens da série, e também se alia a uma construção narrativa de super-herói.

Lançada em 190 países, a série de cinco episódios é um importante produto midiático para discutir matrizes e algumas questões identitárias presentes na série. Apesar de haver elementos de identidades relacionados a outros personagens, são realçados, na trama, os aspectos ligados a três homens cisgêneros e homossexuais (Patrick, Ramon e Donny) – os três protagonistas –, sendo um deles um homem negro. São eles as heroínas drag queens (Lemon Chiffon, Safira Cian e Scarlet Carmesim). Durante o dia, estes personagens trabalham em uma loja de departamentos, mas, quando “o mal está à espreita da comunidade LGBT”, transformam-se para combatê-lo, a partir de uma “montação” que remete às transformações de “humanos comuns” em super-heróis, e permite antever a relação com a cultura drag.

 

Donny (à esquerda). Patrick (ao centro) e Ramon (à direita). (Créditos: Correio 24 horas)

 

O que vemos em “Super Drags” é a utilização de figuras drags transpostas para um universo animado, em justaposição com algumas características estilísticas de animações japonesas e de narrativas dos super-heróis. Aproximando-as do aspecto do super-herói convencional, vemos algumas pistas das relações dessa cultura com a cultura drag, seja pelo título da série, seu desenrolar narrativo, bem como com os termos da sinopse que remetem aos papeis comumente atribuídos aos super-heróis, como “enfrentar vilões” e “salvar o mundo da maldade”.

Assim como a maioria dos super-heróis retratados no universo dos quadrinhos e levados às animações, séries e a cinema, as drag queens de “Super Drags”, a partir do momento em que se montam e adquirem novas identidades, identidades drag (cada qual com suas individualidades e subjetividades), adquirem também elementos do arquétipo do super-herói, que esconde sua “verdadeira” identidade para salvar a humanidade (no estilo Clark Kent/Super-homem, porém LGBT). As duas formas de conceber a identidade acabam não sendo tão distantes, se vistos pelo ângulo da montação. Assim como os típicos super-heróis, as drag queens também se transformam a partir de suas vestimentas.

Em “Super Drags” há, também, uma contestação e questionamento da rigidez do conceito identitário e a heteronormatividade tão presente nas histórias de super-heróis, apesar de haver uma permanência do binarismo presente na cultura drag, no que se refere à busca por características essencialmente femininas. A série abre espaço para esse questionamento quando temos três drag queens que, esteticamente, assumem características ao se transformarem, como curvas, saltos, roupas, peruca e maquiagem tipicamente femininas, que estão comportadas pelo drag, mas também apresentam seios que não parecem ser pintados com maquiagem ou próteses de silicone (ambas formas utilizadas pela maioria das drag queens), mas como se fizessem parte dos seus corpos. Safira Cian (Ramon) é apresentada com o corpo grande e musculoso.

 

Safira Cian (à esquerda), Lemon Chiffon (ao centro), Scarlet Carmesim (à direita) (Créditos: Divulgação Netflix)

 

No que diz respeito, ainda, a estas figuras, há, na forma de paródia, uma referência clara ao Super-Homem quando os habitantes da cidade “Guararanhém”, ao verem três luzes no céu — as Super Drags voando —, questionam (“É homem? É mulher? Não, são as Super Drags”). (“É um pássaro… é um avião… é o Super-Homem”). Desta referência podemos perceber o discurso de que a drag queen, enquanto drag, não é homem ou mulher, mas um ser à parte, que está constituído como um outro corpo. Além dessa e de outras referências, a forma de “se montar” (vestir-se, maquiar-se, enfim, transformar-se) faz referência às animações “Sailor Moon” (1992) e “Winx Club” (2004). Ainda, antes das Super Drags se transformarem, elas gritam “aquenda, hora de montar”, referência a frase de Power Rangers “É hora de morfar!”, utilizando-se do pajubá [2] .

Assim como os heróis dos quadrinhos, animações e filmes, as Super Drags também apresentam superpoderes: as três voam, possuem velocidade, mas cada uma tem um objeto que define suas habilidades específicas. Lemon Chiffon possui um cachecol que estica e funciona como um terceiro braço. Este objeto tem algumas funções convocadas a partir de falas como “Boá de Odara” e “Amarração lacrativa”. Há, aqui, outra referência a desenhos animados japoneses que utilizam desta característica para que os superpoderes funcionem (Sailor Moon, Inuyasha etc). Safira Cian possui a “Varinha BliuBliu” (que em muito se parece com a arma da Sailor Moon), que libera o “Campo de força preservativo” (uma barreira protetora em formato de camisinha). Safira, ainda, tem a água como ponto fraco, assim como o Super-homem tem à Kryptonita. Já Scarlet Carmesim possui o “Leque gongador”, e utiliza poderes como o “Vrááá se lascar”.

Ainda quanto às referências às aventuras de super-heróis, está presente a figura do vilão. Alguns dos antagonistas são a “Lady Elza”, uma drag queen mais velha que deseja sugar o “Highlight” — “a energia vital das gays (…) o que torna elas especiais, pintosas, bafônicas, fechação” (SUPER DRAGS, 2018) — para poder ficar jovem; “Sandoval Pedroso”, encarnando a figura de um profeta preconceituoso; a jornalista “Jezebel”, que se utiliza do seu programa na televisãora desqualificar os LGBTs; e o gerente da loja onde trabalham as Super Drags, enquanto desmontadas, com seu preconceito velado.

Nesse sentido, as matrizes culturais permitem ver mudanças, mas também continuidades, entre os super-heróis tradicionais e as super-heroínas drag queens. Em “Super Drags” destacam-se matrizes que vem não só dos quadrinhos, filmes e séries de super-heróis, como também de outras animações já destacadas na análise, seja em referência a jargões ou a própria influência estética e narrativa de desenhos japoneses e até assimilações com “As Meninas Superpoderosas”. Há a incorporação de ações antes exclusivas de heróis heteronormativos para heróis queer, tensionando-os na relação com uma animação para adultos.

Essas tensões se deixam ver ainda em ações como a da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) que, em julho de 2018, emitiu um comunicado, denunciando Super Drags como imprópria para crianças, pedindo que ela fosse cancelada. A SBP ignorou que ela não era voltada para o público infantil, argumentando que não se poderia utilizar “uma linguagem iminentemente infantil para discutir tópicos próprios do mundo adulto” (sic) e que a “crítica não [era] em relação à existência de uma série sobre drag queens, mas ao fato de as drags serem colocadas na posição de super-heroínas e representadas em um desenho animado”. Embora as animações, no geral, sejam produtos midiáticos associados ao público infantil, há animações voltadas estritamente para o público adulto. É o caso de “South Park” e “Bojack Horseman” (da própria Netflix), e, também, de “Super Drags”.

 

[1] Outra animação que abordou a temática LGBT foi Steven Universo, objeto da crítica do nosso pesquisador Renato Alban em http://tracc-ufba.com.br/sem-categoria/guerra-intergalactica-invasao-alienigena-e-casamento-homossexual/

[2] Veja o “ABC das Super Drags”, disponível em: https://www.facebook.com/SuperDragsTV/videos/abc-das-super-drags-16/774427069571702/

 

REFERÊNCIAS:

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Prefácio à 5ª edição espanhola. Dos meios às mediações. Comunicação, Cultura e Hegemonia, 4ª, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008[1998].

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, Cultura e Hegemonia, 4ª, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008[1987].