Segunda Chamada: educação e minorias na escola de jovens adultos da Globo

 

Créditos: Divulgação/Rede Globo

 

Segunda Chamada, série escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini, roteiristas do filme Chacrinha: O velho guerreiro junto com Claudio Paiva, estreou no último dia 08 de outubro na TV Globo. Recorrendo ao realismo buscado pela emissora em narrativas exploradas recentemente, como Sob Pressão (Jorge Furtado) e Carcereiros (Fernando Bonassi)[1], Segunda Chamada aborda as vivências de professores e alunos da escola estadual Carolina Maria de Jesus, na periferia da cidade de São Paulo, durante o turno noturno, voltado para jovens e adultos.

O nome da escola permite antecipar algumas das questões a serem tratadas nos dois primeiros episódios. Autora de Quarto de Despejo, entre outras obras, Carolina Maria de Jesus foi a primeira escritora negra a ter um livro publicado no país. Como é reforçado pela professora Lúcia, personagem interpretada por Debora Bloch, Carolina de Jesus ocupou um espaço que até hoje é pouco acessado por negros e, ainda mais especificamente, mulheres negras.

Na cena descrita acima, Lúcia fala da escritora para abordar o racismo, comum a diversos alunos da sala, e provocar a turma sobre a reação transfóbica de uma aluna idosa e negra, Dona Jurema, interpretada pela atriz Teca Pereira. Em uma das cenas mais marcantes do episódio de estreia, Jurema e Natasha (personagem da atroz[2] Linn da Quebrada) discutem sobre a possibilidade da travesti usar o banheiro feminino após ser vítima de uma agressão no sanitário masculino.

É Lúcia quem destaca o lugar da escola pública ser um lugar para segundas chances e uma convivência que coloca no mesmo espaço afetos e vivências tão distintas como as evidenciadas por Jurema e Natasha. Os dois primeiros episódios[3] permitem ver como essas relações são permeadas por várias contradições. Ainda no primeiro episódio, Dona Jurema, autora da transfobia citada anteriormente, vai ser excluída na hora do intervalo, sendo acolhida pelas pessoas que estavam na mesa de Natasha. A travesti cede seu espaço para que Jurema possa se sentar, o que acaba aproximando-as.

 

Créditos: Divulgação/Rede Globo

 

Reconhecida pelo público por sua performance que promove “terrorismos de gênero”[4], Linn da Quebrada estreia na TV aberta com Natasha. Durante o dia, a travesti é cobradora de ônibus, sendo as duplas e triplas jornadas explicitadas como características de vários das personagens da série – outro exemplo é Sônia, personagem interpretada por Hermila Guedes, que, além de dar aula em várias turmas, tem que administrar a casa –, aproximando-se da vida de adultos estudantes e professores de turmas noturnas em escolas públicas Brasil afora.

Os apelos para engajamentos identitários e afetos[5] não se esgotam no público que, a pedido da atroz, subiu a hashtag #LinnNaGlobo. As primeiras cenas mostram favelas, ruas e ônibus do sistema de transporte público de São Paulo. Os engajamentos são construídos ainda na recorrência à música AmarElo de Emicida, com participação de Majur e Pabllo Vittar, e sample de Sujeito de Sorte de Belchior; e à versão de Comportamento Geral de Elza Soares, canção composta por Gonzaguinha, lançada pela cantora carioca em seu álbum mais recente – Planeta Fome.

No segundo episódio, Amor Marginal, composição de Johnny Hooker, aparece na trilha da série. Para nós, essas escolhas explicitam os apelos a várias identidades de minorias que compõem o entorno tecnocomunicativo (Martín-Barbero, 2009) brasileiro. Tratam-se de mulheres e homens negros cisgêneros heterossexuais (Elza Soares e Emicida), não-binários (Majur), brancos drag queens (Pabllo Vittar) e gays (Johnny Hooker). A TV Globo apela tanto para a partilha das vivências ali abordadas, mas também para esses fluxos audiovisuais e corpos de minorias (Ferreira, 2019) que a atravessam.

Por fim, mas não menos importante, a série busca afirmar o lugar e importância da educação e do professor nesse momento do país em que a docência é minimizada e ameaçada por cortes orçamentários e propostas como Escola Sem Partido. Logo em uma das primeiras cenas, pode-se ver o cartaz “Educação não é gasto. É investimento”.

Cada episódio é encerrado por depoimentos de alunos e educadores. No segundo, dedicado aos professores, a docente aposentada Eda Luiz rememora Paulo Freire, alvo preferencial de certos militantes que questionam a importância do patrono da Educação no Brasil, para dizer que “A Educação não é a única que transforma o mundo, mas a educação transforma os homens e os homens transformam o mundo”.

 

 

Referências

FERREIRA, Thiago. Transformações de políticas e afetos no Brasil: contextualizando radicalmente o acontecimento Junho de 2013 em fluxos audiovisuais. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019.

GOMES, Itania; ANTUNES, Elton. Repensar a comunicação com Raymond Williams: estrutura de sentimento, tecnocultura e paisagens afetivas. Galáxia: São Paulo, online. Especial 1 – Comunicação e Historicidades, 2019, p. 8-21.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Jesus Martín-Barbero: as formas mestiças da mídia. Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 163, set. 2009. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2009/09/01/as-formas-mesticas-da-midia/. Acesso em: 13 de set. de 2014. Entrevista concedida a Mariluce Moura.

 

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[1] A primeira trata a realidade em um hospital público e a segunda em um presídio.

[2] Atroz é a forma como Linn da Quebrada se definiu em sua página no Facebook na época do lançamento do filme Corpo Elétrico (dir: Marcelo Caetano/2017) que conta com sua participação. “Nem ator, nem atriz, atroz”.

[3] Os dois primeiros episódios já estão disponíveis no Globo Play: https://globoplay.globo.com/segunda-chamada/t/DYpvss7pz5/

[4] Recorremos aqui a uma expressão utilizada pela artista.

[5] Sobre engajamentos identitários e afetos ver Gomes e Antunes (2019).