Pan ou Pã, na mitologia grega, é o deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores. Dele, surge ainda a palavra “pânico”, pois este deus fazia com que os humanos corressem com um medo irracional. Nos tempos pandêmicos em que vivemos, o medo tornou-se parte do cotidiano. Há, literalmente, pessoas correndo para garantir uma cesta básica, em um momento em que as aglomerações são proibidas. A covid-19 mata. A fome também.

Há, ainda, novas práticas disseminadas de maneira mais lenta que a propagação do vírus, como o auxílio emergencial prometido pelo Governo brasileiro. Não há máscaras para todos, o álcool em gel é cada vez mais difícil de se encontrar, e muitos não tem sequer condições de comprá-lo. E quanto àqueles que vivem sem saneamento básico? Os mais pobres, que vivem seu próprio isolamento social antes deste termo ter virado um nome pop?

Para muitos (espero que a maioria), a covid-19 convoca morte, vulnerabilidade e um senso de solidariedade. Para outros, é um tempo prestes a passar, um momento de “tédio social”, ou “apenas uma gripezinha”. A estes, talvez o isolamento social esteja os afetando ao ponto de que não podem ver que esses são os menores problemas em meio a uma pandemia mundial, isso se estiverem mesmo em isolamento social.

Há pessoas morrendo, dia após dia, outras sofrendo em leitos de hospital. Há familiares sem poder estar próximos dos seus entes infectados ou até mesmo sem ter notícias desses. O isolamento social precisou tornar-se uma realidade, pelo menos para aqueles que o seguem. Há, ainda, muitas pessoas nas ruas, porque precisam, infelizmente, manter uma engrenagem funcionando. É desesperador não entender o que se passa, não conseguir ver uma luz no fim do túnel. As sensações provocadas pela pandemia passam de meras mudanças do cotidiano. Não são os shoppings, cinemas, academias e diversos outros estabelecimentos fechados que importam, mas as vidas que não podem ser poupadas e as vidas que não podem ser paradas. Até quando? Não sabemos.

São nesses momentos, também, que Pã poderia não convocar somente pânico, mas sua relação com a música, pelo que também era conhecido. A música, em tempos pandêmicos, tem não só a função de entreter nossas mentes fatigadas e cada vez mais doentes. A música, na pandemia, pode ter também uma função social adaptada a essa realidade. Nesse contexto, quais práticas estão sendo realizadas? E, mais especificamente, como a indústria fonográfica está lidando com o adiamento e cancelamento de shows e festivais e o gerenciamento do lançamento de álbuns de artistas pop de grande porte?

“Chromatica”, o novo álbum de Lady Gaga, deveria ser lançado no dia 10 de abril, mas os planos da cantora foram por água (ou álcool em gel) abaixo, devido à pandemia que assolou o planeta nos últimos meses. Afinal, como lançar um álbum pop tão esperado sem participações em festivais ou divulgações em programas de televisão ao vivo? Contaria Gaga apenas com o streaming, visto que os festivais são grande parte do lucro desses artistas e fontes de visibilidade para novos projetos? Ou quais outras questões a impediram de entregar o novo trabalho aos fãs?

Importante ressaltar que, embora as pessoas estejam mais em casa, o consumo de streaming de música, como o Spotify, teve uma queda de reproduções que passam de 1 bilhão. O estudo da Music Business Worldwide mostra que muitos usuários costumam escutar músicas em suas idas aos trabalhos e durante seus expedientes, e, por esse motivo, houve essa redução com o isolamento, diferentemente do que tem ocorrido com os streamings de vídeo.

E, segundo Harvey Mason, CEO do Grammy, sob as circunstâncias da pandemia: “Eu não acho que a comunidade musical vai se adaptar sob essas condições. Eu acho que as pessoas vão continuar a procurar pelas plataformas de streaming para ver os artistas performarem e entreterem, o que é ótimo, mas eles não podem monetizar isso”. O prejuízo, segundo Mason, chega a músicos da classe trabalhadora e profissionais de turnê, além de prejudicar cantores mais conhecidos. Para ele, a intervenção dos governos e organizações de caridade seria a solução, mas outras estratégias estão sendo tomadas, como a criação de fundos e o aumento dos valores de músicas e álbuns em algumas plataformas.

O adiamento do “Chromatica”, segundo Lady Gaga, deu-se no sentido de que, para ela, “não parece certo lançar este disco durante tudo que está acontecendo nessa pandemia global” (veja aqui a declaração). Tal resposta coincide com o engajamento da cantora com diversas ações de caridade para pessoas necessitadas durante a pandemia. Em uma videoconferência no programa especial de Jimmy Fallon, o “Jimmy Fallon – At Home Edition”, em que o apresentador leva seu programa original, o “The Tonight Show”, para o conforto e segurança de sua casa (o que nunca foi tão verdadeiro quanto agora), a cantora conversou sobre o novo projeto em que está envolvida como curadora, o “One World – Together in home”, em parceria com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Global Citizen, realizado no último dia 18 de abril com a participação de outros artistas, além da própria Lady Gaga. Durante a entrevista, Gaga, que à época já havia conseguido mais de 35 milhões de dólares, ligou para Tim Cook, CEO da Apple, confirmando o valor da doação de 10 milhões de dólares.

A “live” de 9 horas de duração, chamada anteriormente por Gaga de “um momento cultural” em meio a um “momento histórico na história da humanidade”, promoveu o apoio aos profissionais de saúde e beneficiou instituições de caridade. Foram arrecadados, no total, U$ 127,9 milhões de dólares. A artista, ainda, conseguiu unir três emissoras dos Estados Unidos, a CBS, NBC e ABC e apresentadores de cada canal em um momento em que “não importam os índices de audiência”, segundo Fallon. Há, com a crise do coronavírus, um sentido de urgência maior, que extrapola, nesse caso, até mesmo a concorrência entre as emissoras. Importante anotar que a “live” não foi bem uma “live”, pois a maioria das apresentações eram pré-gravadas.

Ao mencionar emissoras, importante anotar que o festival em questão foi transmitido, no Brasil, na Multishow (na TV e no canal do YouTube), na Globoplay e em outras plataformas digitais, como a Amazon Prime. A Globo a transmitiu na TV apenas após o Altas Horas. É possível observar que, neste caso, mesmo tendo um lugar de certa transformação devido ao boom das lives — tema que será abordado mais adiante —,­ a televisão, e, mais especificamente, a Multishow, emissora conhecida por transmitir shows, permanece fazendo algo que já era feito e dando continuidade às suas estratégias.

Porém, enquanto alguns cantores decidiram não lançar álbuns previamente agendados, como Lady Gaga e Sam Smith, outros decidiram antecipá-los. Uns para entreter os fãs durante o período de isolamento social, outros por conta de uma prática cada vez mais comum na música pop: a de vazamento de álbuns. Foi o caso da cantora Dua Lipa.

Previamente agendado para o dia 3 de abril, o lançamento do álbum da cantora britânica Dua Lipa foi antecipado para 27 de março, o “Future Nostalgia”, mas adiou sua turnê no Reino Unido e na Europa. Com o cancelamento do Glastonbury Festival, grande festival no Reino Unido, a equipe de Dua pensou em adiar o álbum para o verão europeu (o que revela a importância dos festivais para divulgação), mas antes de qualquer decisão, o álbum foi vazado, o que a fez decidir lançá-lo com urgência, mesmo em tempos de pandemia.

Talvez, se o álbum não houvesse sido vazado, Dua Lipa tivesse feito o mesmo que seus colegas. Mas não é que tenha dado errado, pelo menos não do ponto de vista dos streamings, já que devido à quarentena e ao distanciamento social, bem como à qualidade do projeto, com notas altas entre os críticos divulgadas no Metacritic (site que reúne críticas especializadas), o álbum alcançou o primeiro lugar no iTunes em 41 países. Além disso, a cantora utilizou outra prática para performar na televisão ao vivo: a videoconferência.

Dua Lipa (Crédito: Reprodução/YouTube)

Visto que há uma impossibilidade de divulgação presencial em programas televisivos com plateia, a cantora, após ser entrevistada por videoconferência para o “The Tonight Show: At home edition”, performou o single “Break my heart”, a partir de um vídeo gravado dentro de sua casa, utilizando-se de chromakey com dançarinos e imagens de uma cidade movimentada com carros e transeuntes, em uma estética urbana dos anos 80. A colagem com sobreposição de imagens era algo bastante comum nos primeiros vídeos da década, a exemplo de “Time Heals”, de Todd Rundgreen.

Mas, em meio à pandemia, mais do que nunca, as práticas de divulgação se associaram ao momento e precisam ser adaptadas. A alternativa de live streaming em meio a pandemia, encontrando o passado de outras eras, trazido pela estética musical e visual da artista, junta-se a um passado não tão distante, num palco onde, caso não houvesse pandemia, a cantora estaria performando. Ainda, ao ver a performance, há uma certa estranheza, quase como se não parecesse que há pouco tempo as cidades estavam daquela maneira, repletas de gente. O futuro nostálgico é o agora?

Talvez o nome do álbum “Future Nostalgia” tenha sido muito certeiro, principalmente na coincidência da iminência de um vírus global. Embora não intitulado com esse propósito, parece que estamos realmente vivendo uma nostalgia do futuro, uma espécie de seu embaralhamento, visto que Dua incorpora elementos estéticos de décadas passadas, mas sem perder de vista sua inserção tecnológica atual e outras inspirações da música pop.

Dua Lipa utiliza elementos estéticos dos anos 1980, como sintetizadores em todas as músicas do álbum, rememorando o synthwave. Além disso, uma de suas canções, “Physical”, tem inspiração direta em “Physical”, de Olívia Newton John, lançada em 1981, cujo videoclipe retrata a cantora fazendo exercícios físicos. Embora não utilize a mesma estética no videoclipe oficial, que é gravado em alta qualidade e com efeitos que não seriam vistos num videoclipe dos anos 1980, Dua Lipa a utiliza no vídeo “Let`s Get Physical Work Out Video”, onde a cantora performa ao lado de dançarinos, evocando os exercícios físicos apresentados pelos programas de televisão dos anos 1980. As referências podem ser vistas, também, a partir do uso das logos em neon, das cores e dos figurinos. A própria Dua iniciou a “era” do segundo álbum com um novo corte e cor de cabelo, bicolor, febre dos anos 80 e 90. O álbum traz, ainda, elementos em suas canções de músicas pop como de Madonna, Pink, Lily Allen e Lady Gaga e a promessa de um retorno ao “pop raiz” (que talvez seja o futuro, o futuro nostálgico).

Os anos 1980 parecem ter sido os anos escolhidos para um retorno ao pop. Fora séries como Stranger Things, da Netflix, sucesso de público, que traz os anos 1980 para as telas, há outros cantores explorando a sonoridade da década, como The Weeknd, com o álbum “Blinding Lights” e a própria Lady Gaga, devido ao single de lançamento “Stupid Love”. O videoclipe da música, por exemplo, faz referências a ficções científicas como Mad Max e até mesmo aproximações com Power Rangers, mas tudo filmado com um iPhone 11 Pro. Seria o “Future Nostalgia” de Gaga?

Ademais, o álbum “Future Nostalgia” de Dua Lipa em nada se aproxima do coronavírus, para além de coincidências, como seu lançamento e algumas de suas letras transformadas em memes durante a quarentena, a exemplo de “I wanna stay at home, cause i was doing better alone” (eu quero ficar em casa, porque eu estava melhor sozinha), parte da letra do single “Break my heart”, que foi prontamente assimilada às consequências da pandemia pelos usuários da plataforma YouTube, conforme visto nos comentários do videoclipe.

Sobre o lançamento do álbum em meio a uma pandemia, a cantora diz: “Não sei se estou fazendo a coisa certa, mas eu acho que a coisa mais importante que nós precisamos no momento é música, e nós precisamos de felicidade, e nós precisamos ver a luz nesses tipos de situação”, disse Dua Lipa chorosa em uma live no Instagram.

Em relação a lives no Instagram, a cantora, que só utilizou desse aparato em 2018, fará mais lives devido ao coronavírus. Fazer lives, para ela, é algo fora da sua zona de conforto. Porém, em tempos pandêmicos, talvez essa seja a melhor estratégia para a divulgação do seu álbum, já que, devido ao vazamento, não pôde ter a mesma possibilidade que Lady Gaga ou Sam Smith. Estrategicamente, Dua Lipa, ainda, comentou cada música no YouTube durante o lançamento do seu álbum.

Com a crise de divulgação de álbuns, que tem força principalmente a partir de formas convencionais como festivais e participações em programas televisivos, o Instagram e o YouTube, por exemplo, ganham não só uma dimensão de divulgação em tempos pandêmicos, mas também deixam ver uma alternativa de sociabilidade entre os músicos e fãs. As lives aproximam a partir dos comentários em tempo real, onde muitos desses “shows” via streaming são simples, em termos técnicos, e convocam outros modos de sensibilidade. Não há uma alta qualidade de som ou de imagem, nem uma produção cara. A própria performance do artista não é a mesma que se estivesse em um palco e não há aglomeração de pessoas com suas bandas.

Segundo uma matéria da Vox, que exemplifica diversos nomes na música e como essas pessoas estão utilizando o Instagram Live Stories, o texto também demonstra como os músicos estão interagindo com seus fãs durante o período de isolamento social e o quão isso se torna íntimo, uma vez que estamos os vendo no conforto de suas casas, não só performando, mas conversando.

As práticas em torno das lives de shows, assim, demonstram não só estratégias da indústria musical ou fonográfica, como outros modos de consumir os artistas pop em tempos pandêmicos. Elas deixam ver sociabilidades entre os músicos e os fãs e permitem um maior acesso, inclusive às pessoas que não teriam condições de pagar por shows desses artistas de renome. Há não só oportunidades de vê-los, mas de vê-los e ouvi-los com sensibilidades diferentes. E há, agora, uma extensa agenda de shows para assistir. Basta escolher, assimilar a data e o horário, ligar o computador ou o dispositivo móvel e assisti-los — caso tenha wi-fi ou ele esteja funcionando —, isso quando a televisão não os transmitir.