O período da China maoísta retratado no documentário
O mais recente documentário do cineasta João Moreira Salles, No Intenso Agora, a estrear no Brasil no Festival É Tudo Verdade, que acontece entre 19 e 30 de abril, no Rio de Janeiro, em São Paulo, e outras cidades, aponta para uma série de questões em torno da relação entre comunicação, cultura, poder e sociedade. A partir de uma narração off em primeira pessoa, Moreira Salles aborda, mesclando memórias pessoais e imagens de arquivo, os distintos contextos do maio de 1968 na França, China, República Tcheca e Brasil.
É um relato pessoal que o envolve e ultrapassa mostrando como aqueles acontecimentos – a revolta estudantil na França, a tomada de poder na República Tcheca pelos soviéticos, a revolução cultural chinesa e a ditadura militar brasileira – marcaram as vidas de não apenas aqueles diretamente envolvidos com esses fatos. Moreira Salles apresenta, com inteligência, que aqueles foram fatos políticos, profundamente marcados por afetos, subjetividades, que se relacionam até com a forma pela qual ele conduz esse documentário em suas memórias. Ao mesmo tempo em que é um belo relato que faz da viagem de sua mãe à China maoísta, é um registro histórico do que foram aqueles anos.
O diretor se recusa, portanto, a seguir a cisão entre emoção e razão que tanto é apontada como necessária para o debate político. É o eu-Salles o ponto de partida daquelas narrativas. Ainda que, aqui e ali, o documentário siga essa divisão, o próprio cineasta indica, por exemplo, que, na França, eram jovens experimentando aqueles que talvez tenham sido os melhores momentos de suas vidas, na busca por, através de disputas políticas, incluir o prazer na vida cotidiana. É um empolgado Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil do maio de 68 francês, que aparece nas filmagens obtidas pelo cineasta, vivendo o intenso agora.
O documentário aborda ainda como aquelas gravações amadoras, como a utilização dos meios de comunicação, exemplificados no discurso de Cohn-Bendit no rádio, na entrevista que o mesmo Cohn-Bendit concede à TV francesa, nos pronunciamentos do general De Gaulle, são importantes lugares para que nós pensemos como as disputas de poder passam por estes espaços. Moreira Salles explicita que o registro nas imagens amadoras resultava da necessidade daqueles anônimos mostrarem o que acontecia com eles. E, às vezes, filmar o que a TV mostrava era a forma de resistência possível. Demonstra também que estes mesmos meios podem ser lugares de cooptação. Ainda em 1968, Cohn-Bendit foi a Berlim cedendo direitos de imagem à revista Paris Match. Revela ainda que uma das frases célebres daquele período foi criação de uma dupla de publicitários. As formas de captura são tão dinâmicas quanto as de resistência.
Com um olhar perspicaz em torno das imagens de arquivo que não são de sua autoria, resultado da pesquisa de Antônio Venâncio, Salles consegue indicar que aqueles registros mostravam mais sobre aqueles contextos do que pressupunham os seus autores. É assim com a tomada no poder na República Tcheca. É assim na explicitação da histórica divisão de classes que caracteriza o Brasil. O documentário que conta com a edição de Eduardo Escorel e Laís Lifschitz recebeu três prêmios do festival Cinéma du Réel em Paris: melhor filme pela Sociedade Civil dos autores multimídia (Scam), melhor música original (Rodrigo Leitão) e prêmio do júri das bibliotecas.
Thiago Ferreira está em Paris pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior da Capes, na Université Sorbonne-Nouvelle (Paris III), sob supervisão das professoras Itania Gomes e Marie-France Chambat-Houillon.