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Créditos: Reprodução Netflix

“Venho querendo falar com vocês. É assustador, não é? O presidente e eu temos um pedido simples. Digam-nos o que virem. (…) Existe muito barulho nos últimos dias. Uma imprensa barulhenta que prefere viver no passado e não se ater ao presente. Meu marido e eu queremos protegê-los.”. A identificação que Claire Underwood (Robin Wright) remete, em sua fala inicial, à empatia que quer parecer possuir para com a situação de medo que vivem os norte-americanos no momento representado na série, é a forma como a quinta temporada de House of Cards se inicia. Ao nos interpelar enquanto espectadores, Claire fala a qualquer nação, qualquer um de nós pode ser convocado pelo que ela diz.

O final da temporada anterior já nos prenunciava o medo, quando Frank (Kevin Spacey)   afirmou que não se submete ao terror, que ele o cria, enquanto assistia à decapitação de um cidadão norte-americano por um grupo extremista islâmico, ao lado de sua esposa Claire – em meio a divulgação  de informações pela imprensa que comprometiam a sua presidência. É este o momento, aliás, em que pela primeira vez, Claire reconhece o público, quebrando a quarta parede junto a Frank, em uma construção imagética que já nos dá pistas para o equilíbrio de forças entre os personagens na temporada seguinte.

Frank e Claire criam o terror e sabem muito bem lidar com ele, sabem que a arrogância da ação controladora de um “pulso firme” rende simpatia de seus eleitores. “O povo é como um bebê, Claire. O bebê que não tivemos. Temos que segurar os seus dedinhos melados e limpar as suas bocas sujas. Ensinar o certo e o errado. Ensinar o que pensar, como sentir e o que querer. (…) Para a sorte das pessoas, eles têm a mim, eles têm você. ”, afirma Frank no quarto episódio desta temporada. Frank nos interpela, enquanto o “homem mais poderoso do mundo livre”, como o próprio afirma.

Todos os 13 episódios da nova temporada foram lançados em todos os países que possuem o Netflix ativo no dia 30 de maio. Não à toa, já que é a data histórica escolhida para lembrar os americanos mortos em guerras – o Decoration Day, que depois virou Memorial Day e que, a partir de 1971, passou a ser celebrado na última segunda-feira de maio. Também é uma data em que se costuma promover as eleições presidenciais nos Estados Unidos, um dos momentos principais para uma série que fala sobre política. E o terror é o palanque para a promoção desta candidatura dos Underwood – para quem não se lembra, Frank é o candidato democrata à presidência norte-americana enquanto Claire é sua candidata à vice-presidência.

A trama se conecta com a realidade política americana, com a eleição do controverso empresário Donald Trump, a quem o ator Kevin Spacey afirmou, em uma entrevista a Stephen Colbert, se dirigir ao quebrar a quarta parede – antes mesmo que ele se tornasse presidente. Aliás, por mais que os realizadores da série afirmem que o roteiro seja precedente a eleição de Trump, podemos observar uma série de paralelos com o contexto americano, desde o uso de afirmações atribuídas pela imprensa da existência de manipulações de hackers nas eleições, à própria forma de ação contra o terrorismo de Underwood. Mesmo um universo ficcional pode ser um indício assustador da realidade.

A grande motivação que conduz a narrativa da série nesta temporada não é restrita à conquista da Casa Branca. Isso não seria tão coerente em se tratando dos personagens principais. O que os motiva agora é o poder – seja da forma que vier, custe o que custar. Chegar à Casa Branca é pouco para os Underwood, eles querem o controle político e ideológico, algo que não é só a presidência da nação mais poderosa do mundo que pode dar. E só nos damos conta disso nos últimos episódios, quando as táticas se revelam.

Frank insiste em declarar guerra para abafar o que foi divulgado contra ele pelo jornal Washington Herald e ainda sofre investigação no Congresso, com um burburinho sobre pedido de impeachment. Quando se vê sem chances de vencer nas urnas, usa o terror para gerar pânico na população, especialmente nas cidades e estados que são reduto dos republicanos. Uma invasão hacker, permitida pelos Underwood, ajuda a firmar esse temor. A declaração de guerra faz com que os americanos se intimidem e não cheguem às urnas, causando uma votação extremamente baixa, que leva dois estados a se recusarem a fazer a contagem dos votos da sua população, o que faz com que o processo de arraste por meses. Há aqui, inclusive, uma referência por similaridade à eleição de 2000, nos Estados Unidos, quando George W. Bush disputava com o então vice-presidente de Clinton, Al Gore, com quem Underwood afirma não parecer, no final do quarto episódio da quinta temporada.

Enquanto o oponente dos Underwood é um republicano que passa a imagem de fazer política de forma nova, usando uma transmissão online durante as 24 horas finais da votação americana, os Underwood percorrem todo o país no velho estilo de apertos de mãos e discursos em grandes convenções. Mais uma informação sobre Frank chega às mãos de Tom Hammerschimidt (Boris McGiver), jornalista que já o investiga há dois anos. Em um desses vazamentos, Tom recebe um telefonema em que a voz é mascarada, numa clara referência ao “Garganta profunda”, informante no caso Watergate, que acabou com a renúncia do presidente Richard Nixon. No final da temporada descobrimos que o próprio Frank arquitetou tudo isso para que pudesse ganhar o perdão por seus crimes da nova presidente, Claire, e ele usasse sua influência no setor privado. O tiro no próprio pé seria porque, segundo ele, nunca deixariam de investigá-lo. E quando a presidência chega às mãos de Claire, ela não hesita em se preservar e foge do acordo que fez com o marido. “Minha vez”, ela afirma, encerrando o último episódio da quinta temporada.

Ainda são Frank e Claire que ditam as regras, inclusive sobre o que se revela sobre eles. Os jornalistas que os investigam nesta temporada ainda são reféns das informações que eles permitem, por entre as pontas soltas. Os jornalistas não batem de frente com os Underwood mesmo quando os criticam. Além disso, a questão sobre a ética jornalística também é posta em jogo. Outro ponto apresentado na série é o de que jornalistas podem se submeter facilmente a esses jogos de interesses, como se fossem facilmente “comprados”. Onde estão as jornalistas combativas das temporadas anteriores, aquelas que, de fato, davam “dor de cabeça” aos Underwood?.

É Claire que reina nesta temporada, afinal é ela que se torna presidente – de interina a definitiva, após a renúncia tática de Frank. Há uma mudança física da personagem que ajuda a demarcar isso: suas roupas, seu cabelo, a paleta de cores que a rodeia – antes sempre acinzentada, agora é em cores mais vivas e angelicais. Tal como indicam os produtores da série desde o princípio, a personagem de Claire é construída a partir de Lady Macbeth, personagem shakespeareano, assim como a referência que reforça toda a construção narrativa da série. Mas Claire vai além: ela não é mais do que somente cúmplice do marido nesta temporada. A cumplicidade dos personagens dá lugar ao equilíbrio de forças – a Claire não é somente sua aliada, é alguém que almeja o poder tanto quando o marido.

Agora podemos ver o casal Underwood como iguais, em sua forma de agir, pensar e no poder que têm e almejam ter nas mãos – ainda existia certa humanidade nas ações de Claire, mesmo sob todo o pragmatismo e impassividade de sua personalidade. Quando ainda podíamos ver culpa ou remorso, ao final desta temporada já não podemos ver mais. As mãos sujas de sangue não provocam delírios como os remorsos de Lady Macbeth. Até mesmo os monólogos de Frank, bem à base das tramas shakespearianas, são mais comedidos nesta temporada. Claire, agora, nos reconhece, mas ainda não a conhecemos. E nós, para ela, somos motivos de “sentimentos ambíguos”. “Só para esclarecer: eu sempre soube que você estava aí. Tenho sentimentos ambíguos por você. Questiono suas intenções… e sou ambivalente quanto à atenção. Não leve a mal. É o que sinto por quase todo mundo.”, é o que ela diz ao espectador no décimo episódio da última temporada. Podemos, sim, ver as ações de Claire enquanto mulher não restrita a características determinadas socialmente como sendo da ordem do feminino, sem romantismo.

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Créditos: Divulgação Netflix

“Não há nada a temer” é o que afirma Underwood passados pouco mais de 50 minutos do episódio de estreia da 5ª temporada. O que esta temporada nos leva a pensar? Brechas na democracia representativa, através dos usos de meios previstos em Constituição. Mas não é só a bandeira americana que está ao avesso e de cabeça para baixo. É inevitável não falar do Brasil assistindo a essa temporada. Nas redes sociais já ouvíamos Michael Kelly, intérprete de Doug Stamper afirmar: “Povo do Brasil, isso não é uma competição. Nunca se sabe de onde vem a inspiração.”. Um outdoor oficial da Netflix no aeroporto de Brasília afirma: “Escolher dinheiro em vez de poder. Um erro que quase todos cometem”. Uma presidente interina assumindo a Casa Branca – para adequarmos a série ao Brasil, basta inverter os gêneros – ou a busca incessante por uma votação indireta no Congresso e no Senado que impeça o impeachment, são algumas das muitas referências possíveis. Os administradores da série no Twitter já afirmavam que era “difícil competir” com a realidade brasileira.

Há uma transgressão do óbvio em House of Cards, seja pelas lógicas produtivas ou pelas matrizes culturais do universo ficcional. A partir da relação entre essas matrizes e as competências de recepção, pela mediação da socialidade proposta por Jesús Martín-Barbero, observamos que o público consegue experienciar certos valores culturalmente partilhados a partir da série, muito por conta da proximidade que a narrativa traz com a realidade. A forma de nos interpelar diz muito dessa maneira de convocar a olhar para si mesmo. E podemos ver, também, que isso circula entre as ritualidades, nos usos sociais; as tecnicidades, nas percepções; e as institucionalidades, na dimensão que regula os discursos. E é por isso, também, que, como em todas as temporadas anteriores, é difícil prever os próximos passos dos Underwood. House of Cards dita as próprias regras, dá as próprias cartas.