Num país que promoveu e promove o apagamento negro de sua indústria cultural, os pretos continuam sendo a alegria da cidade¹. Essa resistência orgânica e potente, essa recusa em sair de cena mesmo com as cortinas fechadas, coloca a musicalidade negra como um dos pilares (talvez, condicionantes) do que se pode chamar de música brasileira. Por isso, a trajetória de Letieres Leite com a Rumpilezz e seu Universo Percussivo Baiano me parece tão rica como tema de análise, articulada às discussões sobre diáspora negra e estudos culturais.

O maestro contava que, estudando música em Viena, tinha a sensação de que faltava algo, que aquele conhecimento “não era suficiente para explicar a música que eu estava querendo fazer” (LEITE, 2019). Quando vinha de férias ao Brasil, retomava o maior contato com a percussão, seja nos terreiros ou em encontros e festejos com amigos. Percebia ali algum “rigor”, estruturas musicais que até então desconhecia formalmente, mas que certamente não se davam de maneira aleatória. Em entrevista ao Nós Transatlânticos ele menciona um marco da sua trajetória artística: quando virou colega de banda de “um cubano” que tocava seguindo uma partitura. Era um “esquema de salsa” e não estava organizado como as partituras convencionais, mas sim usando uma clave rítmica. Foi ali que Letieres enxergou a possibilidade de estudar a estrutura das “músicas matriciais”, como ele chamava, a partir da rítmica, da percussão, do tempo. O maestro conta, empolgado, que em Cuba isso foi possível com a criação da Escola Nacional de Música, onde mapearam toda a produção musical da ilha e a organizaram no sistema de registros/ensino russos de música clássica. Traçando um paralelo com o jazz e as universidades nos EUA, Letieres enxergou a potencialidade desse processo “extremamente poderoso do ponto de vista técnico e do ponto de vista do conhecimento da sua música matricial”, entendendo a música matricial como aquela de origem negra, agora validada pela ótica científica das faculdades de música.

É após essas experiências que ele funda a Orkestra Rumpilezz e o Rumpilezzinho. A Orkestra é composta de percussão e sopros e seu nome faz alusão aos três atabaques tocados em religiões de matriz africana (rum, rumpi e le) com as últimas letras da palavra “jazz”. Já a Rumpilezzinho é uma iniciativa de ensino de música e história para jovens de até 25 anos, onde Letieres era o diretor pedagógico e outros professores se somam ao trabalho, incluindo historiadores e instrumentistas. Os projetos são a materialização do método Universo Percussivo Baiano, desenvolvido com base na oralidade dos terreiros de candomblé e nas claves rítmicas presentes na musicalidade negra. É com o UPB, que identifica a menor porção rítmica das músicas, que Letieres regia seus trabalhos e pesquisas. Numa entrevista, o maestro traz um disco de Cartola como exemplo: é possível perceber “lá dentro onde no deslocamento rítmico da voz dele, com o arranjo ou com o violão, está a clave matricial. O DNA matricial” (LEITE, 2020). Letieres afirma que, com isso, conseguimos saber de que nação aquele “DNA” veio, e ele é “tão preciso, tão rigoroso, vigoroso esse DNA, que ele encerra questões etnológicas; geográficas, de onde ele vem, para onde ele vai; questões históricas, é desse grupo, que esteve naquele lugar […]. É como se fosse um chip de computador”. E essa matriz chega por aqui através da diáspora negra: “Os negros trazem isso para a cultura do Ocidente e transformam a América inteira. Quando você falar de músicas nacionais das Américas, você sempre vai estar recorrendo a um ritmo que é consequência da diáspora negra” (LEITE, 2020).

Defensor da ideia de que não é possível estudar música de matriz africana sem estudar história, essa noção de “raiz”, de DNA, de lugar “original” também é muito presente no trabalho e nas entrevistas de Letieres. Pergunto-me se essa visão não acaba limitando as possibilidades de transformação cultural por buscar sempre um ponto fixo, sobretudo no passado, para explicar nossa produção musical². Tratar a “influência” africana nas identidades nas Américas como uma questão de sobrevivências na cultura – na língua ou nos ritmos musicais, por exemplo – não é algo novo, como explica Stuart Hall (2003). Pensando na realidade caribenha, Hall coloca que a África foi e é reinventada por aqueles sujeitos da diáspora, do lado de cá do Atlântico, e surge não como o território pré-colonial e de sequestro de escravos, nem como um atual continente explorado pelo imperialismo, mas reimaginada de maneira alternativa, como matéria-prima de padrões culturais novos, ricos, com raízes que “sobrevivem”. Hall escreve que a própria ideia de diáspora africana, muitas vezes, está contaminada também por esse mito de origem onde a história “circula de volta à restauração do seu momento originário, cura toda ruptura, repara cada fenda através desse retorno”. O autor segue dizendo que, neste sentido, a identidade cultural estaria “em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta” – um mito dominante que confere sentido à nossa história (HALL, 2003). A busca de Letieres por um “DNA matricial” nos ritmos brasileiros recai, algumas vezes, nas armadilhas desse mito, da nação, de uma história fixa, dos limites geográficos. Mas, em outros momentos, o maestro parece querer também superar esses mesmos limites e apostar na identidade afro-brasileira como plural e ao mesmo tempo única, como numa entrevista à Revista Raça em que ele diz que nossa música “é afro-brasileira, sim, porque esses ritmos foram formatados dentro do Brasil. Não chegaram grupos puros e foram levar para o terreiro os ritmos e a herança sudanesa ou banto. Não.” (LEITE, 2016).

E é neste ponto que gosto de aproximar o trabalho de Letieres à Améfrica de Lélia Gonzalez, como “uma criação nossa e de nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em modelos africanos” (GONZALEZ, 2020). Ao analisar a formação social brasileira, Lélia propõe que sua fundação é o “racismo por denegação”. Diferente do caso norte-americano, onde era praticada a segregação, por aqui os colonizadores ibéricos promoveram um tipo “disfarçado” de racismo, onde as hierarquias sociais operavam de maneira eficaz mesmo sob o manto de uma “miscigenação pacífica” (e desejosamente clareadora). O resultado, segundo a autora, é uma alienação mais profunda dos discriminados, em relação ao racismo “aberto” praticado, por exemplo, nos Estados Unidos. A Améfrica de Lélia surge da necessidade urgente de combate aos sistemas racistas e suas especificidades.  E vejo nos projetos Rumpilezz e Rumpilezzino um reconhecimento de que “amefricanos oriundos dos mais diferentes países têm desempenhado um papel crucial na elaboração dessa amefricanidade que identifica na diáspora uma experiência histórica comum que exige ser devidamente conhecida e cuidadosamente pesquisada”. A amefricanidade reconhece “um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o outro lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos” (GONZALEZ, 2020).

Se dizer afro-brasileiro para Letieres Leite, acredito, é reconhecer-se. Não só no sentido de se encontrar, mas também de se conhecer de novo. Se refazer. Buscar, identificar, celebrar os pedaços que foram separados e apagados pela/da cultura dominante – os pedaços pretos – e afirmar que nossas identidades na América pós-colonial se constroem condicionalmente com/na experiência dos africanos que para cá foram trazidos. A sensação de deslocamento, “familiar e profundamente moderna” (HALL, 2003), vivida pelos negros nas Américas pode ser muitas vezes desesperadora, mas também desperta um desejo de construção, de tomar as rédeas da própria história. Não consigo deixar de imaginar que isso ocorreu com Letieres Leite, especialmente nas ocasiões de suas viagens pelo exterior e o retorno a uma Bahia que ele queria transformar através da música. A concretização da Rumpilezz e do método UPB me parece um esforço neste sentido. Por isso, vejo afro-brasileiro como um termo tão caro e tão potente para o maestro, e sua apropriação e compreensão pode transformar não só a música, como ele pretendia, mas nosso passado, nosso presente e, sobretudo, nosso futuro.

Notas

¹ Canção de Jorge Portugal e Lazzo Matumbi, das minhas favoritas. Ouça aqui.

² É preciso lembrar que Letieres fala a partir de uma disputa direta com a indústria do carnaval e da Axé Music, onde esteve inserido como produtor, músico e arranjador por muito tempo, acompanhando e denunciando o racismo estruturante da festa de rua, com suas cordas e camarotes excludentes, e do gênero musical embranquecido, dominado pelo empresariado que empurrava os negros ao apagamento.

 

Referência

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flávia Rios e Marcia Lima, Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

LEITE, Letieres. Toda música brasileira é AfroBrasileira. [Entrevista concedida a Luciano Matos]. El cabong, maio, 2020. Disponível em: https://elcabong.com.br/entrevista-letieres-leite-toda-musica-brasileira-e-afrobrasileira/

LEITE, Letieres. A Orkestra Rumpilezz e a música afro-brasileira. [Entrevista concedida a Vinícius Gorgulho]. Revista Raça, 2016. Disponível em: https://revistaraca.com.br/a-orkestra-rumpilezz-e-a-musica-afro-brasileira/

LEITE, Letieres. Tradições em Contemporaneidade Musical. Youtube, 2019. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pagX33_fRkQ.

LEITE, Letieres. #sescjazz Universo Percussivo Baiano, com Letieres Leite | Aula 2. Youtube, 2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zU4EaowBREY.

SCOTT, Guilherme. Universo percussivo baiano de Letieres Leite – educação musical afro-brasileira: possibilidades e movimentos. Dissertação (Mestrado em Música) – Faculdade de Música, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2020. Disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/31404