Lute como uma super-heroína? Mulher-Maravilha, Capitã Marvel e as pautas femininas

Desde que a Marvel se consolidou enquanto produtora de filmes baseados nas histórias em quadrinhos de seus heróis, havia uma cobrança por parte da crítica e dos fãs pelo primeiro longa-metragem solo protagonizado por alguma de suas heroínas, a exemplo do que já acontece com Thor, Homem de Ferro e Pantera Negra. Por já fazer parte da trilogia Os Vingadores, a expectativa era de que a primeira produção fosse da Viúva Negra, mas o projeto ainda não foi concretizado. Saiu na frente a DC Comics lançando, em 2017 seu primeiro filme focado em uma personagem feminina. Quase dois anos depois, a Marvel, enfim, decidiu investir no primeiro filme solo de suas heroínas: Capitã Marvel.

Capitã Marvel promete exercer papel central na sequência de Os vingadores, pois o seu filme conta a história de Carol Danvers, que se torna uma das guerreiras mais poderosas do universo durante uma guerra entre duas raças extraterrestres: os Kree e o Skrulls. O filme teve a sexta maior bilheteria mundial de estreia da história. Mulher-Maravilha foi lançado com boa avaliação após várias de suas produções do mesmo universo não alcançarem o resultado esperado, vide Batman versus Superman. O filme se concentra numa história já conhecida. Diana Prince, princesa das Amazonas, que descobre que uma guerra está acontecendo para além dos domínios de seu povo ao conhecer o piloto Steve Trevor. Ao se empenhar em acabar com todo esse caos, ela entende sua missão enquanto heroína e todo o potencial de sua força.

Mas quais são as similaridades e diferenças entre Mulher-Maravilha e Capitã Marvel para além de serem filmes protagonizados por heroínas? Quais aspectos do feminino são construídos em suas narrativas? De início, nos dois casos, a atuação das mulheres ultrapassa o que vemos na tela. A direção de Mulher-Maravilha é assinada por Patty Jenkins. Em Capitã Marvel, Anna Boden divide a tarefa com Ryan Fleck e o filme é baseado nos quadrinhos da roteirista Kelly Sue Deconnick, que começou a escrever as histórias solo para a personagem em 2012. Aliado a isso, são obras que não são pensadas para serem derivações de histórias de heróis, como foi o caso de Super Girl (1984), Mulher Gato (2004) e Elektra (2005).

Em ambos os filmes o militarismo é ressaltado enquanto agente normatizador para justificar a posição de ambas as heroínas na história. Seja através de uma narrativa mitológica ou pela narrativa do exército Kree, a mulher pode salvar o mundo, desde que ela tenha sido preparada e direcionada para isso. Viúva Negra, apesar de não possuir superpoderes, também precisou do treinamento da KGB para ser reconhecida heroína, Superman, ao contrário, é essencialmente herói e poderoso, seu futuro já está predestinado.

De modo implícito, questões feministas atravessam as duas histórias, porém com abordagens diferentes. Em Mulher-Maravilha, o tratamento é feito de forma sutil e se relaciona ao seu não pertencimento à sociedade inglesa, local para onde ela foi ao sair da ilha das Amazonas. Como desconhece as regras sociais impostas às mulheres no período da primeira guerra mundial, quando se passa a trama, Diana as questiona. Assim, cenas em que a personagem não entende por que uma mulher tem que andar de mãos dadas com o marido, sua roupa de amazona é considerada inadequada e as mulheres não estão guerreando trazem certa comicidade ao filme.

Em Capitã Marvel nos é apresentada uma metáfora da condição feminina em nossa sociedade. Carol possui um propósito inicial de executar uma missão, que é rapidamente substituído pela busca de sua verdadeira origem, através de evidências de que ela teria vivido na Terra. O filme apresenta pela primeira vez uma personagem bastante conhecida nas histórias da Marvel: a Inteligência Suprema, um computador cibernético que é capaz de reunir informações das principais mentes militares do Império Kree e indicar os pontos fortes e fracos de seus adversários. Na narrativa, ao tentar rebaixar Carol, afirmando que ela é apenas uma humana e que nunca teve força para controlar seus poderes, a Inteligência Suprema também se torna uma alegoria de um sistema patriarcal que reprime os anseios das mulheres.

Mas, se nós nos deparamos, junto com Carol, com várias memórias em que ela teria fracassado – ao cair e ter sido chamada de incapaz, ao ser considerada inadequada para estar no exército, um ambiente onde se reforça uma masculinidade dominadora e agressiva –, também a vemos levantar e persistir em todos esses momentos. Portanto, quando confronta sua oponente e afirma “eu sempre lutei em desvantagem, mas o que pode acontecer quando eu estiver livre?”, Carol alude e reage a um machismo que enquadra e desconsidera o lugar de protagonismo do feminino.

A relação entre mulheres e emotividade também surge em ambos os filmes. Em Capitã Marvel, Yon-Rogg, seu mentor no exército Kree, manipula Carol e limita o acesso dela aos seus poderes se colocando como presença necessária para que ela controle suas emoções e aja de acordo com seu cérebro e não com seu coração – reforçando um discurso que associa o masculino à racionalidade e o feminino ao (desequilíbrio) emocional. Porém, com muita tranquilidade, a heroína o derruba com um único golpe e afirma que não tem nada a provar para ele.

Já o que ocorre em Mulher-Maravilha é um reforço de um vínculo estereotipado entre mulheres e emoção, pois a heroína sai de sua ilha natal acompanhada de um homem com a missão de matar Ares, o deus da guerra, porque ela simplesmente acredita no amor, um reforço à crença – ingênua – de que o sentimento vencerá no final e salvará a humanidade que move a personagem. Embora ela não seja uma mocinha que precisa ser resgatada – pelo contrário, seus poderes de heroína salvam os seus companheiros de guerra –, a existência de um par romântico, o espião Steve, faz com que a história de amor tome conta do filme.

A crítica aqui não é sobre a presença de um parceiro para a personagem, justificada do ponto de vista da narrativa do filme, mas ao tipo de relação que se estabelece entre os dois. Nesse sentido, o filme mais recente da série pós- apocalíptica Mad Max, Fury Road, é um ótimo exemplo de parceria entre um homem (Max) e uma mulher (Furiosa) que não recorre ao romance, ao cavalheirismo e a ideais de beleza. Furiosa é careca, usa uma prótese no lugar de um dos braços, está suja de areia, graxa e sangue a maior parte do filme e não tem outra preocupação que não atravessar um deserto sendo perseguida pelo tirano Immortan Joe e seus discípulos e conta com a ajuda de Max para cumprir esse objetivo.

 

Figura 1: Furiosa em Mad Max (Warner Bros)

A comum erotização da personagem de Mulher-Maravilha nas telas parece ter ganhado neste filme uma preocupação: as roupas curtas e coladas que delineavam seu corpo na série televisiva da década de 70, deram lugar a uma armadura, mais condizente com a sua tarefa de liderar uma guerra. Entretanto, seus gestos mais combativos ainda demonstram delicadeza e graciosidade, pois mesmo quando ela pula de uma trincheira de guerra para confrontar o inimigo, poderíamos aplicar a mesma construção de cena em um desfile de modas ou comercial de xampu, tamanha suavidade demonstrada no toque do vento em seus cabelos e no modo como a personagem caminha.

 

Figura 2: Lynda Carter e Gal Gadot como Mulher-Maravilha (Revista Monet)

Nesse quesito não há tanta diferença entre Diana e Carol Danvers, que também está mais próxima dos padrões de beleza ocidentais. Porém, seu corpo não se torna uma grande atração do filme. Ela surge na tela com seu uniforme ou em um estilo grunge, com roupas que rouba de um manequim de uma loja. Ainda que não saibamos se por uma escolha proposital ou por um equívoco na concepção e filmagem, é perceptível que as cenas de luta não são focadas na performance da personagem. Há em Capitã Marvel um jeito mais debochado, menos sério de lidar com esses momentos.

 

Figura 3: Carol Denvers (Foto: Chuck Zlotnick/Marvel Studios 2019/Divulgação Disney)

Além disso, Carol Danvers não tem um par amoroso. É com Maria Rambeau, sua melhor amiga, que a personagem troca olhares carinhosos quando decide sair em uma missão para ajudar os Skrulls a terem um lar. E é justamente essa a maior parceria que observamos no filme. No passado, as duas experimentaram a rejeição na Força Aérea por serem mulheres e viram no projeto da doutora Wendy Lawson uma oportunidade de poder pilotar. Rambeau se tornou mãe e continuou investindo na carreira com o apoio de Carol, e no momento presente do filme Rambeau ajuda Carol a se reencontrar consigo mesma e com suas origens após descobrir que tinha sido enganada por Yon-Rogg.

Monica Rambeau, filha de Maria, também surge no filme como uma garota que não permitirá que seus anseios sejam cerceados. Ela incentiva Maria a pilotar junto com Carol na missão de ajuda aos Skrulls quando a maternidade faz a personagem hesitar e já expressa seu desejo de no futuro construir uma nave e encontrar a tia Carol no espaço. Além disso, dialogando com um público leitor de quadrinhos e com a demanda por representatividade negra nesse universo, ao apresentar a personagem, a obra também faz um tributo e deixa o suspense no ar se nos próximos filmes veremos a participação da primeira super-heroína que usou o nome Capitã Marvel, uma vez que Carol Danvers surge como Miss Marvel e só ganha esse título a partir de 2012.

Esses dois filmes atualizam contextualmente duas personagens que possuem uma longeva trajetória nos quadrinhos. Mulher-Maravilha foi lançada em 1941, quando o mundo entrava em sua segunda grande guerra. Apesar de ter sua origem ficcional na Grécia, a heroína trazia em suas roupas as cores da bandeira estadunidense, que pode indicar uma tentativa de criar um sentimento de representação junto ao público feminino dos Estados Unidos através de uma personagem forte. Seu criador, William Moulton Marston, acreditava na pauta feminista e queria criar uma personagem que representasse toda a potencialidade feminina. No filme A Liga da Justiça, Diana se apresenta enquanto uma mulher poderosa, entretanto ela não é páreo para o Superman.

Já Carol Danvers surge em 1968, em meio a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, cujos embates estavam também sendo travados na área da exploração espacial. Havia também nesse período uma intensificação de movimentos pela igualdade de direitos femininos e o lançamento da HQ da então Miss Marvel tinha como objetivo acompanhar as manifestações pró- feminismo que surgiram em torno da década de 70, através de uma personagem que trabalhava na Força Aérea e mantinha laços intergalácticos com outros povos.

Os dois filmes, dadas as suas proporções narrativas e contextuais, apresentam uma forte relação entre um ambiente de guerra generalizado, onde as duas personagens são agentes da paz e restauradoras da ordem. Essa é uma condição que ultrapassa suas questões femininas e acessa um ponto muito próprio no universo dos super-heróis, estes que possuem capacidades inerentes e individuais de desfazer o caos e salvar o dia. São questões caras em uma sociedade capitalista, que valoriza a conquista alcançada pelo esforço próprio. Em obras futuras, talvez possamos ver essas heroínas sendo representadas através de narrativas que valorizem a empatia, a solidariedade e o trabalho mútuo, assim como foi ensaiado em um breve momento de Vingadores: Guerra Infinita.