Interceptflix: #Vaza-Jato, serialização e fluxos de informação
A #VazaJato – série de reportagens do site The Intercept Brasil (TIB) a partir de mensagens trocadas entre membros do Ministério Público e o juiz da Operação Lava Jato, Sérgio Moro, no aplicativo Telegram – tem prendido a atenção, desde o dia 09 de junho, de um sem número de pessoas que aguardam com avidez cenas dos próximos capítulos. Aqui recorremos a certos termos, como série de reportagens, próximos capítulos e processos de captação de atenção por considerarmos ser importante para a compreensão das estratégias empreendidas por Glenn Greenwald – o principal jornalista responsável pela cobertura – e equipe a relação com elementos de serialização já presentes no jornalismo brasileiro.
Desde a publicação do primeiro conjunto de três reportagens, o The Intercept Brasil já publicou 15 matérias (escrevemos esse texto no dia 18 de julho). Tratam-se de capítulos de uma história cuja cobertura pretende rever a principal operação policial e judiciária da nossa história recente. Para além da questão referente à legalidade da obtenção desses diálogos, sua enunciação marca uma temporalidade própria, instaurada pelo processo jornalístico de divulgação de um conteúdo que, embora privado, reivindica um forte valor de interesse público. Nesse sentido, apesar de ser geralmente caracterizado como um relato sobre acontecimentos do tempo presente, o jornalismo é, sobretudo, um modo de construir a narrativa sobre esses fatos, de arranjá-los de modo que façam sentido em uma trama temporal.
O discurso hegemônico sobre o jornalismo contemporâneo ora silencia, ora marca território com relação às noções de ficção e entretenimento na tentativa de distanciar qualquer ligação que coloque em disputa os valores centrais da instituição, especialmente àqueles ligados à verdade e à razão (VILAS BÔAS, 2012). Apesar dessa disputa discursiva, a relação entre as formas jornalísticas e a fragmentação da narrativa é constituidora do próprio modo como a instituição se tornou uma indústria bem-sucedida. A periodicidade da publicação de notícias formou para o jornalismo um público leitor, uma rotina produtiva que lhe permitia acompanhar a agenda pública e a fama de instituição capaz de zelar pelo interesse público.
Ao falar da cobertura da #VazaJato, o próprio The Intercept Brasil se vale de termos que remetem à ideia de serialização: “Em seus primeiros capítulos, as histórias dos arquivos secretos da Vaza Jato mostraram Moro atuando como chefe de fato dos procuradores, o que é ilegal”. Esse modo de caracterizar o material produzido não apenas indica que a narrativa será fragmentada, mas anuncia também que há muito por vir, que há muito mais informação do que o que se apresenta a princípio. Em um movimento complementar, o título da cobertura apela para a denominação de escândalos, recurso utilizado pelo jornalismo brasileiro e que dialoga com elementos da internet, com a indexação das discussões através da hashtag, abrindo espaço para que tanto a cobertura, publicada online, quanto o burburinho produzido por ela gere um fluxo constante de informação em rede.
Assim, parece-nos fundamental problematizar a cobertura feita na #VazaJato a partir de uma consideração em que vivemos em um entorno tecnocomunicativo caracterizado pela presença de fluxos de imagem e informação (MARTÍN-BARBERO, 2009). A serialização através das reportagens conta com essa circulação em fluxo, em que áudios e prints das mensagens são compartilhados por diferentes pessoas em diferentes plataformas, como Whatsapp, Instagram, Twitter, Facebook, entre outras. Das diversas comparações e comentários feitos por figuras públicas, destacamos a da deputada Jandira Feghali, do PCdoB do Rio de Janeiro, que comparou a série de reportagens do Intercept com a plataforma de produção e exibição de filmes e séries Netflix, chamando-a de Interceptflix, e ressaltando a possibilidade de divulgação de novos episódios todas as semanas. Sem contar a espera dos assinantes do site pela chegada de novos episódios através de sua newsletter – que divulga os textos da cobertura em primeira mão.
Essa estratégia se consolida com a adesão de parceiros na publicação das histórias anunciadas pelo veículo principal. A entrada em cena da Folha de São Paulo, Veja e do jornalista Reinaldo Azevedo reforça a circulação dessas reportagens, pelo lado da chamada grande imprensa comercial do Brasil, atingindo uma recepção originariamente não englobada pelo site. O The Intercept Brasil é consumido de forma mais maciça por um público identificado com o espectro ideológico de esquerda. Já Veja e Reinaldo Azevedo ocuparam, nos anos dos governos petistas, o espaço de baluartes do antipetismo.
Para além da adoção de uma forma textual e narrativa de publicação de conteúdos jornalísticos, essas estratégias funcionam ainda na relação com discurso sobre a qualidade da produção jornalística e sobre valores ligados ao discurso hegemônico sobre sua vocação democrática. Assim, em audiência pública para a qual foi convocado na Câmara dos deputados, Glenn Grenwald respondeu a perguntas sobre quando, por exemplo, publicaria áudios que afirmava ter na grande quantidade de material que foi entregue por sua fonte, que os publicaria quando estivessem jornalisticamente tratados; no mesmo sentido, quando a procuradora Monique Cheker enviou nota ao site O Antagonista – defensor das ações da Lava Jato – contestando a atribuição de mensagens à sua pessoa, O The Intercept publicou uma thread no twitter e um texto em seu site explicando o passo a passo de seu processo de apuração para identificação de autoria de tais mensagens.
Para Carlos Eduardo Franciscato, “fragmentar eventos em cortes temporais conforme a periodicidade da publicação tornou-se parte do ato de construir o fato jornalístico” (2005, p.144). Assim, mesmo a noção de tempo presente seria um “fenômeno social composto por práticas sociais, relações de sentido e atributos inscritos em produtos culturais” (FRANCISCATO, 2005, p.15) e são eles que tornam a vivência do tempo presente uma experiência concreta. A construção temporal proposta pelo The Intercept Brasil como modo de revelação pública de algo a respeito do que havia grande suspeita em parte da opinião pública do país privilegia uma forma narrativa que dialoga com modos contemporâneos de construção ficcional. Em parte, o leitor consome a história porque parte de seu contentamento vem do fato de que ele é brindado com a sensação de ter descoberto antes, de ter tido a capacidade de leitura de um texto ainda não revelado; em parte, o que alimenta a sua relação com a história é justamente a promessa de que há algo por vir que ele nem poderia imaginar.
Com a imensa quantidade de informação circulando em fluxos cada vez mais acessíveis na internet, contudo, a contradição dos acusados em relação a afirmações antigas que valorizavam o interesse público na relação com a vida privada de agentes do Estado tem sido também retomada como um gancho importante. Se há uma indicação amplamente conhecida de que o jornalismo precisa contar mais do que um lado da história, o modo como a cobertura da Vaza Jato tem sido feita em diálogo entre diferentes veículos e plataformas de informação no Brasil, parece nos mostrar que essa recomendação às vezes precisa de um contraditório que não se resolve em apenas uma narrativa, mas reivindica múltiplos pontos de vista. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.
Referência
FRANCISCATO, Carlos Eduardo. A fabricação do presente: como o jornalismo reformulou a experiência do tempo nas sociedades ocidentais. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2005.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Jesus Martín-Barbero: as formas mestiças da mídia. Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 163, set. 2009a. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2009/09/01/as-formas-mesticas-da-midia/. Acesso em: 13 de set. de 2014. Entrevista concedida a Mariluce Moura.
VILAS BÔAS, Valéria. Outras notícias virão logo mais: periodicidade e serialidade nos telejornais diários da Rede Globo. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012.
25 de julho de 2019