Steven Universo: Guerra intergalática, invasão alienígena e casamento homossexual

Essa não é uma crítica livre de spoilers. Nem poderia ser. Steven Universo é um desenho animado de premissas simples. Quem assiste aos primeiros episódios da série dificilmente entende como ela se tornou o principal programa do canal Cartoon Network e porque ganhou o GLAAD Media Awards no mês passado. O GLAAD é o maior prêmio americano de reconhecimento de representatividade LGBT na mídia.

 

Pronto. Já dei um spoiler. Foi apenas na sexta temporada, que terminou em fevereiro, que a série quebrou um ineditismo na televisão infantil: exibiu um casamento entre duas personagens do mesmo sexo. Foi também nos episódios mais recentes que o desenho abordou a transgeneridade de forma mais evidente. E não para aí. De relacionamento abusivo até desigualdade social, temas espinhosos não ficam fora da trama da série.

 

A principal estratégia da criadora de Steven Universo, Rebecca Sugar, para tocar em temas tabus na TV infantil é envolver os subtextos em uma fantasia lúdica, sensível e bem amarrada. Lançado em 2013, Steven Universo é uma ficção científica das boas, com direito a invasões alienígenas, guerra intergaláctica e seres fantásticos. Mas até a grandiosidade da narrativa demora a aparecer. De cara, somos apenas apresentados a uma trama sem muitas pretensões, mas extremamente fofa.

 

Rebecca Sugar é a primeira mulher a criar um desenho animado no Cartoon Network (Crédito: Cartoon Network)

 

A fofura se deve ao protagonista da série. Steven é uma criança que cresceu numa pequena cidade litorânea dos Estados Unidos. Ele é criado por três “crystal gems”. As “gems” são criaturas de outro planeta que se parecem com mulheres e as crystal gems são gems rebeldes que moram na Terra e lutam contra monstros. Com o passar da série descobrimos que Steven é fruto do amor inédito entre uma crystal gem e um humano.

 

Na mitologia da série, a mãe de Steven, Rose Quartz, liderou uma rebelião contra o planeta natal das gems. E é aí que a série fica mais interessante. O planeta das gems é uma ditadura onde as habitantes são separadas por castas e que faz colônias pela galáxia, dizimando populações inteiras. Apaixonada pela Terra e pelos humanos, Rose passa a defender a liberdade das gems e enfrenta os valores autoritários e racistas do planeta natal.

 

Steven é criado pelas gems Garnet, Pérola e Ametista (Crédito: Cartoon Network)

 

Mas, para Steven nascer, Rose se foi. Sem a líder das gems rebeldes, as três que sobraram passam a criar Steven como um filho. A priori, Garnet, Pérola e Ametista parecem personagens unidimensionais. Garnet é a madura; Pérola; a disciplinada; e Ametista, a divertida. Nada disso. Rebecca, criadora do desenho, não para de acrescentar camadas e mais camadas de personalidade às personagens, incluindo o próprio Steven.

 

Apresentada a história e os protagonistas, me dou o direito de mais um spoiler. Este é fundamental para entender a premiação do GLAAD e também o motivo pelo qual esse será o objeto de estudo de minha pesquisa de mestrado, que partiu do interesse em estudar a representação de relacionamentos homossexuais para crianças. Garnet, uma das crystal gems, não é uma personagem, mas duas. Melhor dizendo, um casal de crystal gems.

 

Esses seres fantásticos têm a capacidade de se fundirem, aumentando suas forças e capacidades. No caso de Garnet, no entanto, ela é resultado do amor entre duas gems, Safira e Rubi. Um amor proibido no planeta natal, onde fusões entre gems de diferentes tipos é visto como uma aberração. Mas, na Terra, esse relacionamento não apenas foi protegido por Rose como se torna símbolo de amor e estabilidade para Steven. Construir essa metáfora de um relacionamento homossexual em uma obra voltada ao público infantil não foi simples, segundo a criadora da série.

 

Casamento de Safira e Rubi foi ao ar na última temporada do desenho (Crédito: Cartoon Netwoork)

 

Em entrevista à revista Entertainment Weekly, Rebecca contou que pretendia criar a relação amorosa desde o início da produção, mas ela teria sido avisada que o desenho não poderia ser categorizado como “conteúdo gay”. Aos poucos, ela conseguiu alcançar o seu objeto e contou à revista Rolling Stone o que a levou a querer contar essa história: “Precisamos mostrar para as crianças [LGBTs] que elas pertencem a esse mundo. Você não pode esperar elas crescerem para falar isso para elas, ou o estrago já estará feito”. Para Rebecca, a ausência de histórias infantis com personagens LGBTs pode ratificar a crianças LGBTs que elas são “inapropriadas”.

 

Separadas por uma gem do planeta natal no final da primeira temporada, Safira e Rubi conseguem se fundir novamente e, unidas, vencem a vilã cantando a música “É mais forte que você”. Na canção, Garnet afirma: “O que fizemos juntas você não tira / Nós vamos ficar assim toda a vida / Se você nos separar, voltaremos novas / E seremos duas vezes você na hora / Sou feita de amor”. Em outro episódio, a personagem explica quem é: “Eu incorporo o amor de Rubi e Safira, eu sempre existirei nelas”.

 

Em um momento do cinema e da televisão em que os trailers entregam mais do que devem, Steven Universo demora a mostrar ao que veio. Mas não desistam. O plano de Rebecca é mais ambicioso do que parece. O casamento de duas alienígenas que parecem mulheres e vivem fundidas em uma representação do amor delas é apenas o início de uma jornada que impressiona pela capacidade de entreter e abordar assuntos tabus ao mesmo tempo. Mas, agora, chega de spoilers! Vão maratonar esse desenho!