Aspecto marcante do crescimento desenfreado das grandes metrópoles, principalmente em países subdesenvolvidos ou com desenvolvimento tardio, as favelas foram ganhando destaque no imaginário social formado sobre o Brasil. Seja nos noticiários ou em produções de sucesso da televisão e do cinema, como Cidade dos Homens (2002-2005), Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), o foco recai sobre a violência e criminalidade dentro dessas comunidades. Entretanto, existem outras representações desses espaços que precisam ser levadas em conta. Buscamos quais disputas sobre estes “espaços urbanos” foram estabelecidas ao longo da cinematografia nacional a partir de duas obras: Cinco vezes favela (1962) e 5x favela – Agora por nós mesmos (2010).

Pelo menos desde a década de 1930 a favela está em nosso cinema, tendo como exemplo Favela dos meus amores (1935), filme de Humberto Mauro que incorporava as tentativas de estabelecimento de uma cultura nacional-popular, de uma ‘brasilidade’, como o samba e o carnaval. Esse sentimento teve sua grande obra anos depois, com o lançamento de Orfeu do carnaval (1959), dirigido pelo francês Marcel Camus e vencedor do Oscar de Melhor filme estrangeiro. Ao mesmo tempo, o cinema nacional já começava a mostrar sinais de mudança. Com Rio 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), ambos dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, a filmografia brasileira passou a incorporar uma visão que buscava o realismo sobre a miséria nas grandes cidades, questionando o regime de verdade estabelecido sobre a favela como lugar idílico.

Filme emblemático nesse contexto de surgimento do movimento do Cinema Novo, Cinco vezes favela (1962) vem inserir o espaço das comunidades populares na esteira das discussões sobre a relação do cinema com as mazelas do país. Buscando referências em Rio,40 graus e em movimentos de vanguarda do cinema europeu, o projeto surgiu a partir do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Dividido em cinco episódios, o filme contou com a direção de Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman.

Um dos pontos sobre Cinco vezes favela é o forte teor ideológico da obra. Refletia no Brasil o acirramento ideológico visto no mundo inteiro, entre países capitalistas e socialistas. Seguindo discussões do CPC, o projeto já surgiu inserido numa formação discursiva de esquerda radical. Portanto, esse discurso se faz presente na obra das mais variadas formas, seja pelo radicalismo dos conflitos ou pela estética realista adotada. Utilizando atores amadores, planos abertos nas ruas e praças, uma iluminação natural e diversas corridas com a câmera na mão, o filme traz marcas eternizadas pelo neorrealismo italiano, como em Ladrões de Bicicletas (1948). Mesmo que inspirado em movimentos europeus, o olhar crítico que buscava um realismo sobre as mazelas do Brasil se coloca como um aspecto emergente, a partir das categorias de temporalidades de Williams, dentro da cinema nacional daquele momento.

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Cenas de Um favelado e Ladrões de Bicicletas

Assim como nos movimentos europeus do pós-guerra, o debate sobre temas característicos da cultura nacional estava presente nos questionamentos políticos levantados pelo Cinema Novo. Em Cinco vezes favela, essa aproximação com a cultura nacional é marcada pela trilha sonora presente durante todo o filme. Contando com compositores diretamente ligados com a então recente bossa nova, a música na obra utiliza muito desse movimento musical surgido no final da década de 1950, além do samba carioca, identificado com um dos principais símbolos de brasilidade.

Após a instalação da Ditadura Militar em 1964 e seu consequente endurecimento a partir de 1968, a crítica social sobre a pobreza das favelas foi perdendo espaço para temas históricos ou metafóricos, além das comédias baseadas na literatura nacional. No período entre 1985-1995, o cinema nacional viveu uma grande fase de declínio, tanto em produção quanto em impacto de público, que acompanhou o momento econômico conturbado do país após o fim da Ditadura. Aliado a esse clima de incertezas, a década de 1990 trouxe o estouro do narcotráfico e o inchaço das metrópoles, resultando no aumento da violência relacionada às drogas.

Nesse cenário, o chamado cinema da Retomada vai recolocar o foco nas desigualdades sociais do país, destacando a violência e o tráfico de drogas nas favelas. Exemplos surgem nos documentários e ficções, como Como nascem os anjos (1996), dirigido por Murilo Salles, Notícias de uma guerra particular (1999), de João Moreira Salles, Ônibus 174 (2002), de por José Padilha, e seu principal expoente, Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles. Após causar muita discussão sobre a representação da favela, o filme de Meirelles se tornou referência para filmes posteriores à Retomada, como Tropa de Elite (2007), dirigido por José Padilha.

Produzido nesse contexto já estabelecido na Retomada, o 5x Favela – Agora por nós mesmos (2010) surgiu como projeto de diversos observatórios e oficinas realizadas nas próprias comunidades. Semelhante na montagem e fotografia, além do trabalho das oficinas de atuação, com filmes como Cidade de Deus, a obra busca uma visão menos determinante da violência nas favelas, apontando caminhos mais otimistas frente às dificuldades sociais enfrentadas por seus moradores. Assim como na versão original de 1962, o longa conta com cinco episódios, dirigidos por Manaíra Carneiro, Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal e Cadu Barcellos.

Um momento que evidencia a aproximação com obras contemporâneas acontece no curta Concerto para violino, quando policial e traficante interrogam alguns integrantes de outra gangue. A cena se relaciona com diversas passagens de Tropa de Elite, quando o Capitão Nascimento tortura diversos jovens paro obter informações. Em ambos os filmes, o destaque fica por conta de planos fechados nas armas em cena, além da ausência de trilha sonora, que destaca os gritos que marcam tais momentos de tensão. Essa aproximação indica um aspecto dominante presente em 5x favela, representando o conflito entre polícia e traficante de forma semelhante a obras de sucesso recente.

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Momentos de interrogatório em 5x favela e em Tropa de Elite

Apesar da forte presença da violência neste episódio, o filme de 2010 trata os problemas com bom humor e sem carregar em sua produção uma formação discursiva tão fortemente ideológica como na versão de 1962. Como um produto de moradores das favelas, a obra aponta uma disputa de sentido sobre o favelado ligado ao esforço individual, colocado enquanto caminho para uma melhoria de sua condição social. Essa abordagem, que evita tanto o fatalismo ideológico do Cinema Novo quanto a violência randômica da Retomada, pode ser colocado com uma dispersão da representação da favela no cinema nacional produzido até aqui.

Importante ressaltar também as diferenças estéticas entre as duas versões, fortemente influenciadas pelo contexto de produção de cada filme. Inspirados em movimentos de vanguarda europeus, os diretores em Cinco vezes favela já buscavam marcas para retratar a realidade brasileira que seriam trabalhadas no Cinema Novo, como enquadramentos de câmera na mão e uma iluminação que utilizava o sol para criar grandes sombras e contrastes em suas obras.

As características são distintas na versão de 2010. Formados pelas oficinas técnicas, algumas já existentes desde a produção de Cidade de Deus, os diretores buscam aqui uma aproximação com o real que mistura aspectos do Cinema Novo, como a utilização de não-atores, com propostas estéticas ligadas à publicidade e ao videoclipe, como uma montagem mais acelerada, principalmente nas cenas com mais ação dos personagens. Fica clara a preocupação dos cineastas em estar inserido nessa atualização estética em filmes sobre favela, como Cidade de Deus e Tropa de Elite, ao mesmo tempo em que busca referências no Cinema Novo e aponta para uma abordagem mais otimista.

Talvez a principal distinção que desponte entre as duas versões e que dialoga com seus contextos de produção específicos é a opção pela resolução coletiva no filme de 1962 e os processos individuais em 2010. Enquanto a obra do CPC demonstra uma preocupação de esboço ideológico sobre o conflito entre opressor e oprimido a partir do coletivo, a produção mais recente não coloca esta disputa em foco, buscando soluções para as dificuldades sociais através do esforço individual.

Referências

MATOS, Matheus Vianna. Favela na tela: Disputas das representações das comunidades populares a partir das versões de “Cinco vezes favela” (1962) e “5x favela – Agora por nós mesmos” (2010). Monografia – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979

ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo. Um balanço crítico da retomada. São Paulo, Liberdade, 2003

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001