Manna e o que o fantástico nos permite ver frente a monumentalidades

“Que Jornalismo é esse que, por suas intrigas teodicéicas, ofereceria-nos diariamente a nossa oração laica da manhã que nos afugentaria o caos, chamaria-nos à razão e preservaria-nos a lucidez? Esse jornalismo que nos ampararia diante do caos, da dispersão dos acontecimentos, da fatalidade dos desvios, da alienação da verdade e da disjunção de um mundo em permanente mudança… Qual é esse jornalismo que, em sua atualidade, constituiria nossa obra comum, condição para a ordenação de nossa história em progresso?” (MANNA, 2016, p. 10).

Eis as questões que abrem o livro Jornalismo e o espírito intempestivo: fantasmas na mediação jornalística, da história, na história, resultado da tese do doutor em Comunicação pela UFMG, professor da FACOM/UFBA e membro do TRACC, Nuno Manna, e que evidenciam, já de saída, a posição do autor em relação aos jornalismos estadunidense e brasileiro e às sociedades que eles configuram e nas quais são configurados. O autor evidencia, através dessas perguntas, que o jornalismo deve ser compreendido como um dispositivo, na compreensão foucaultiana do termo, que teria a função, a partir de uma série de discursos, de organizar nossas vidas. Entretanto, o que Manna propõe é que vejamos que os jornalismos mediam a história ao passo em que são estabelecidos por ela.

Manna argumenta como a ideia positivista de progresso, a partir de distintas inflexões, é estabelecida na relação com os jornalismos praticados no Brasil e nos Estados Unidos, este último tomado como lugar importante para a configuração do jornalismo moderno. Ele expõe nas suas análises e, seguindo argumentos de autores como Afonso de Albuquerque, que devemos entender que as identidades jornalísticas não são postulados universais, nem resultantes de processos naturais, mas sim, que são perpassados e constituem as sociedades que integram. E que certos elementos dessas identidades se relacionam com outros momentos históricos.

Uma consequência direta desses movimentos feitos por Manna é entender as teorias do jornalismo também elas como uma das monumentalidades, um dos dispositivos, que, ao lado dos manuais, cadernos especiais e museus, configuram a mediação entre os jornalismos, as sociedades em que estão imbricadas e a modernidade. Portanto, essa tese acarreta em implicações políticas, teóricas e metodológicas na relação com esse campo de estudos normatizador e regulador, problematizando que jornalismo se fala quando se fala em jornalismo.

[…] em vez de simplesmente ir de encontro a tal concepção funcional do que aqui chamamos de jornalismo, convocamo-na como gesto consciente e estratégico. Trata-se não somente de denunciar seus limites, mas de assumir que ela é, de maneira significativa, constitutiva de nossa experiência com as narrativas que se configuram pelos jornais e, portanto, toma parte no problema que enfrentamos. Assim, a proposta de circunscrever um ou outro fenômeno jornalístico específico não é, de maneira geral, o que nos move. Isso porque, primeiro, interessa-nos compreender de que jornalismo se fala quando se fala em jornalismo, ou melhor, que representação de jornalismo orienta as notícias que lemos e que dinâmicas movem essa representação. (MANNA, 2016, p. 18).

Dividida em duas partes e quatro capítulos (sendo a segunda parte compreendida por dois ensaios), a tese trabalha com as noções de intempestividades e narrativa – compreendida como “uma condição da experiência humana do tempo” a partir de Ricoeur – para abordar os jornalismos e seus fantasmas. Nessa discussão, adquirem um lugar central os textos em torno de uma crise no jornalismo, compreendida por Manna como uma maneira de naturalizar os discursos sobre o jornalismo e a história. “[…] o discurso da crise se mostra absolutamente simplista, ingênuo e conveniente ao desconsiderar a complexidade histórica que funda os fenômenos jornalísticos” (idem, p. 34-35). É uma tese que propõe revisões políticas e críticas em relação ao jornalismo e outras narrativas que, como ele, mediam nossas relações com as sociedades e tempos. Há uma explicitação de que esses textos não podem ser compreendidos como estruturas a serem tomadas a partir de exercícios imanentes, que se expliquem através de si mesmas, mas que devem ser pensados enquanto processos; como textualidades.

Ademais, o livro expõe discussões em torno da modernidade, entendida como um “regime de historicidade a partir da qual configuramos nossas experiências do tempo narrativamente” (ibidem, p. 29), o lugar ocupado pelo fantástico na relação de alteridade com o jornalismo; e os fantasmas no jornalismo – a defesa do campo em torno de suas narrativas monumentais, a partir da análise dos “lugares que mais fortemente são reconhecidos como formas fortemente institucionalizadas do jornalismo, e que, ao mesmo tempo, são os maiores focos onde incidem as pressões de tal crise: os diários impressos” (MANNA, 2016, p. 20).

Para isso, Manna debruça-se, por um lado, no discurso modernizador da Folha e suas matrizes culturais – que não são chamadas dessa maneira pelo autor –, como as reformas do Diário Carioca, do Jornal do Brasil e da própria Folha da década de 70. E, por outro, na discussão do contexto americano, ele expõe como o Newseum, o museu de notícias localizado em Washington, estabelece vínculos com certas noções monumentais do que é o jornalismo para os estadunidenses, através de uma análise arguta da 1ª emenda da Constituição americana, aquela que se refere, entre outras, à liberdade de expressão e de imprensa. Ele busca as relações entre os Estados Unidos e a sociedade americana; e entre as lógicas de modernização do jornalismo brasileiro com o Brasil; na análise de textualidades configuradas a partir de dois jornais considerados de referência: New York Times e Folha de S. Paulo.

O autor os traz na relação com dois dispositivos jornalísticos, o já citado Newseum e o material publicitário da reforma editorial da Folha em 2010, compreendendo, em seus movimentos, passado e futuro como lugares “sombrios”. Manna analisa reportagens do primeiro sobre a abertura do Newseum, na celebração de certa tradição de passado dos Estados Unidos; e do segundo, sobre a reforma da Folha, vendida sob o mote do “jornal do futuro”.

No primeiro, observando os gestos que colocam a imprensa estadunidense – emblematicamente representado pelo New York Times – como protagonista da história do jornalismo moderno, destacamos as maneiras como se busca no passado um importante pilar de afirmação do jornalismo no presente; e, nesse aspecto, a fundação da “América” e sua mitologia política constituem importante monumentalidade de um espaço de experiência comum.

No segundo, destacamos a recorrente aposta do jornalismo brasileiro, atualizada pela Folha, na inauguração do futuro como forma de promover a afirmação de um ordenamento histórico; e o apelo à modernização do país surge como estratégia importante no horizonte de expectativa jornalístico. (grifos do autor) (MANNA, 2016, p. 22).

Com um texto ágil e provocador, Manna mobiliza autores e narrativas para revisitar e expor a relação dos jornalismos, modernidade e sociedades e revelar as aporias intempestivas que, ainda que não citadas pelos discursos hegemônicos, os constituem. Ou como ele afirma “como o jornalismo se oferece, por meio de narrativas e dispositivos, como mediação da história, na história (grifo do autor) (idem, p. 11)”. Reafirmamos: a modernidade é posicionada pelo autor como um lugar importante para essas mediações, sendo compreendida nesse trabalho como um regime de historicidade, marcada por “um intenso conflito de temporalidades” (ibidem), não devendo ser tomada como um regime temporal homogêneo e opaco.

Outro aspecto importante a ser salientado é a relação do autor com o fantástico – entendido como “um universo literário moderno, cujas maneiras de configurar narrativamente relações de alteridade constituem um modo de experiência da história fortemente marcada pela tensão entre atualidade e intempestividade” (ibidem) – exposta em outros trabalhos acadêmicos e na sua dissertação de mestrado – que deu no livro A Tessitura do Fantástico –, cuja resenha no site do TRACC pode ser lida aqui.

Se naquele livro, Manna convocava o fantástico para expor como ele tece e deixa ver outros aspectos da modernidade, a partir da análise de um conjunto de filmes, enfatizando o lugar d’O homem sério, dos irmãos Coen (2009). Aqui, ele coloca-o, a partir de uma série de autores, como Allan Poe, Kafka, Rubião e Machado de Assis, a fim de explicitar as fantasmagorias, intempestividades e os paradoxos em torno das narrativas que tecem as histórias em torno do jornalismo hegemônico. Ajudando a “compreender aspectos e dinâmicas da mediação da história operada pelos jornais” (grifo do autor) (MANNA, 2016, p. 12). A partir de Dorothea von Mücke, diz Manna:

A narrativa que se opera pelo fantástico, assim, coloca em ação a convocação de elementos e dinâmicas extemporâneas a uma suposta ordem do tempo. Nos termos da autora, o fantástico nos oferece a experiência da realidade mediante a aparição de um outro histórico. É por tais operações que o fantástico nos é estratégico enquanto operador para a compreensão da dialética entre a atualidade, propriedade de ser real e de se estabelecer em conformidade com uma ordem do tempo, e a intempestividade, propriedade de negação do real e de se estabelecer como extemporâneo na ordem do tempo. Os exemplos convocados da literatura abrem, assim, nossa vivência do presente à invasão de potências de um passado que deveria ter sido superado e de um futuro que nos escapa ao domínio – sendo então o fantasma uma de suas mais emblemáticas manifestações. O fantástico compreendido, enfim, enquanto modo particular de relação do ser humano com o tempo histórico que toma parte importante nas narrativas da modernidade, desafia qualquer concepção natural, linear, teleológica ou progressiva que possa sustentar nossos parâmetros de realidade (grifos do autor) (MANNA, 2016, p. 15).

O fantástico, portanto, é convocado pelo autor para desestabilizar noções do moderno e do jornalismo que se baseiam em sentidos de ordem, progresso e razão. Ao ser um fantasma do moderno, o fantástico permite desvendar outras faces, contrárias/complementares aos jornalismos; aos discursos estabelecidos em torno de identidades nacionais e experiências comuns do Brasil e dos Estados Unidos, com os jornalismos sendo partes fundamentais da configuração desses comuns modernos nacionais.

Mais que isso, Manna refuta centralmente esse tipo de argumentação, mostrando aos leitores que esses discursos são reiterados em diferentes momentos históricos e constituem certas expectativas e definições hegemônicas dos jornalismos brasileiro e estadunidense. Esses argumentos participam daquilo que compreendemos como elementos hegemonicamente definidores das duas sociedades que ele analisa na relação com os jornalismos, marcando as diferenças que se estabelecem a partir dessas distintas experiências e horizontes de expectativas, consideradas nesses termos por ele a partir de Koselleck.

Diferentemente do regime americano, não encontramos por aqui um profundo orgulho ou apego a nossas heranças políticas, culturais, sociais ou mesmo jornalísticas, ao não ser por aquelas que se impõem, no passado, como marca distintiva de exortação ao novo. Para nós, o futuro, que marcaria a diferença – ou a revolução mesmo – em relação ao passado, se torna uma ameaça justamente quando o horizonte de expectativas se desenha como fracasso dessa marcação. Seus fantasmas, nesse sentido, surgem ao mesmo tempo da irrealização de certos projetos históricos, e da própria sobrevida intempestiva de um espaço de experiência, que é real demais para ser solapado pelas supostas narrativas da ordem e do progresso configuradas pelo jornal. (MANNA, 2016, p. 268).

Em Jornalismo e o espírito intempestivo: fantasmas na mediação jornalística, da história, na história, Manna tensiona perspectivas historiográficas do jornalismo que remontam processos históricos como etapas de certo desenvolvimento, contrapondo-se às postulações que pensam o jornalismo dentro do escopo político-ideológico-teórico-metodológico oriundo de discursos modernizantes. Ou seja, os jornalismos não estão avançando rumo a um futuro de progresso, em que supostamente e inexoravelmente serão melhores junto a sociedades mais avançadas; nem se referem a um passado longínquo, marcado por um momento de ouro dos jornalismos e das sociedades em que estão inseridos.

Portanto, em vez de compreendermos o jornalismo como algo uniforme, linear, coerente, possuidor de qualquer tipo de natureza ou essência, devemos pensá-lo como imperfeito, inconcluso e profundamente ligado às sociedades, não como espelhos das mesmas, mas como mediações que deixam ver complexos aspectos de suas configurações. Ou seja, no lugar de apenas compreendê-los – jornalismos e sociedades – sob as chaves da razão, progresso e modernidade, também devemos vê-los na relação com o fantástico e na apreensão de seus fantasmas e intempestividades, restituindo-os de seus caracteres histórico, contextual e temporal. Além disso, Manna nos mostra que enquanto as narrativas tecidas pelas textualidades presentes em torno dos jornalismo e sociedade estadunidenses propagam a reconstrução de um passado orgulhoso que se projeta sobre o presente; seus respectivos no Brasil tomam o passado e o presente na busca de um potencial futuro moderno em permanente construção.

Referências

MANNA, Nuno. Jornalismo e o espírito intempestivo: fantasmas na mediação jornalística da história, na história. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG. 2016.

MANNA, Nuno. A tessitura do Fantástico: narrativa, saber moderno e crises do homem sério. São Paulo: Intermeios, 2014.

20/12/2017