Duas décadas atrás, o seriado Buffy, A Caça-Vampiros ia ao ar pela primeira vez

Foto: Divulgação The WB

Foto: Divulgação The WB

Há exatos vinte anos o extinto canal americano The WB exibia pela primeira vez o episódio-piloto do seriado Buffy, a caça-vampiros. Protagonizado pela relativamente desconhecida Sarah Michele Gellar, a história girava em torno de uma adolescente de 16 anos (a única de sua geração) que, muito a contragosto, descobre ter sido escolhida para combater as forças da escuridão, o que automaticamente incluía, como nos diz a convenção, uma horda insistente de vampiros vestidos em sobretudos e monstros verde-musgo. Em sua teimosia e inquietude juvenil, Buffy dividia-se entre matar vampiros e frequentar as aulas de matemática (o segundo demandava um pouco mais de esforço), enquanto que pouco a pouco aceitava, não sem relutância, a sua difícil missão: zelar pelo portal que separava o seu lar – a não tão pacata cidade fictícia de Sunnydale – de uma dimensão demoníaca escondida nas entranhas do terreno de sua escola, uma metáfora no mínimo preciosa.

Eu sei, é difícil falar de Buffy sem arrancar um sorrisinho de deboche de quem quer que esteja ouvindo de volta. Mas a verdade é que, ao longo de suas sete temporadas, o seriado idealizado e escrito por Joss Whedon (que também assina o roteiro de filmes como Toy Store e Os Vingadores) deixou de ser sinônimo de monstros mal feitos, dramas adolescentes e vampiros com maquiagem duvidosa para se tornar, também, uma emblemática narrativa de ficção seriada, uma história cujas apostas e acertos reverberam ainda hoje, mesmo duas décadas após a sua estreia.

Voltar aos anos de 1990 para recriar o cenário em que Buffy despontava requer um pouco de ginástica mental. Os tempos eram outros para a televisão da época. De um lado, as redes americanas consolidavam uma tendência que, embora tenha perdido grande parte de suas forças com o passar dos anos, dominava a ficção seriada no trânsito entre a década de 90 e os anos 2000: as tramas ambientadas em colegiais, cujo expoente mais significativo talvez tenha sido o icônico Barrados no Baile (Beverly Hills 90210), no ar por dez anos antes de sua conclusão.

Do outro lado, as histórias de vampiros que circulavam nos anos 1990 incluíam títulos como a adaptação cinematográfica de Blade, Entrevista com Vampiro e Drácula de Bram Stoker, obras que ajudaram a dar um sentido àquilo que se entendia por vampiros naquela época.

E embora esses dois elementos sejam parte integral da narrativa – vampiros e colegial – a história que Whedon queria contar vinha de uma inquietação de natureza muito distinta: o criador de Buffy incomodava-se com uma das cenas mais batidas dos filmes de terror: o da donzela em perigo, sozinha e indefesa em um beco escuro.

Foi nessa tentativa de reversão de um clichê instituído ao longo dos anos pelas histórias de horror que Whedon fez de Buffy a sua heroína, lançando-a por um caminho que ensaiava ser trilhado por suas contemporâneas Dana Scully, de Arquivo X, e Xena, em uma época em que as mulheres assumiam papéis principais de forma ainda mais tímida, especialmente nos enredos de ficção-científica e fantasia.

E se por um lado Buffy parecia seguir à risca a organização mais tradicional de narrativa seriada em vigor no anos 1990 (uma média de vinte episódios por temporada, cada um deles com subtramas independentes articuladas em torno de um único mote central, personificado geralmente pela presença do grande vilão da temporada),  por outro Whedon mostrava pouco receio em esticar o seriado para além de seus extremos, em esforços criativos que resultaram em alguns dos mais consagrados episódios entre os devotos do programa.

Em Hush, quando demônios flutuantes sorrateiros – e levemente assustadores em seus ternos elegantes e pescoços magricelos – roubaram a voz dos habitantes de Sunnydale, Whedon teve de se inspirar nas estratégias do cinema mudo para dar prosseguimento a sua história, que, verdade seja dita, naquele momento caminhava para a metade da quarta temporada e já tinha uma base consolidada de fãs para sustentar uma aposta arriscada. Nessa nova roupagem que implementava uma narrativa sem vozes à estética e ao ritmo dos seriados dos anos 90, Whedon atualizou-se uma vez mais, entregando ao espectador um episódio envolvente e  dinâmico que agradou não apenas à comunidade de fãs mas aos críticos, raramente piedosos com um programa televisivo que se autodenominava Buffy, A Caça-Vampiros. O resultado foi a conquista inédita de uma indicação ao Emmy por melhor escrita em um seriado dramático.

Em meio às turbulências implicadas em uma mudança de canal não planejada (em 2001 Buffy deixaria a emissora original The WB para encontrar nova morada na extinta UPN, onde permaneceria pelos próximos três anos, até o fechamento definitivo de sua produção), Whedon testou os limites de seu show (e talvez a paciência dos executivos da nova rede) uma vez mais. No episódio musical Once More With Feeling, o primeiro desse estilo na série e um dos favorito entre os fãs, Whedon mostrou de novo o seu pouco alinhamento para com o rigor implicado em contar uma história sobre vampiros.

Sob a justificativa de que um demônio cantante e dançante havia sido misteriosamente convocado a Sunnydale, e contando com a sorte de ter ao seu lado um elenco talentoso e afinado,  Whedon deu ao universo de Buffy uma perspectiva mais harmônica e sincronizada. Ao longo do episódio, os acontecimentos se desdobraram sob a forma de canções (mais tarde, Whedon retornaria aos musicais com o projeto Dr. Horrible’s Sing-Along Blog).

Longe de ser um episódio gratuito e descolado da linha narrativa central que conectava os episódios da sexta temporada – a penúltima da série -, Once More With Feeling foi esculpido com criatividade e sob uma lógica diferente, mas sem perder de vista o enredo central da série; e um episódio que tinha tudo para ser leve e divertido (é o que acontece quando você coloca demônios para dançar) ganhou densidade dramática nos minutos finais, com uma revelação que reverberou ao longo de todo o restante da temporada, ironicamente uma das mais criticadas.

Os desagrados para com a sexta temporada vieram como uma reação às apostas do programa em trazer para Buffy problemas do mundo real. Um emprego particularmente ruim em uma rede de fast food que escondia ingredientes secretos nos seus hambúrgueres deu origem a um dos mais odiados episódios da história da série. A gota d’água talvez tenha ficado por conta da escolha dos vilões da temporada: humanos, pela primeira vez em seis anos. Embora muito do sobrenatural em Buffy funcione e ganhe apelo perante ao público por causa da associação com problemas da vida cotidiana, a escolha por vilões humanos (e a consequente perda de um elemento de referência de fantasia) curiosamente parece ter sido suficiente para estremecer as fundações do seriado.

Por outro lado, as críticas circularam em torno do tom mais sério que a temporada adquiriu, uma mudança drástica se comparada a seu primórdios. De fato, em movimento parecido com o que aconteceria mais tarde com Harry Potter, tanto os livros quanto os filmes, Whedon teve de lidar com o desafio de encontrar o tom certo para agradar uma audiência que por sete anos cresceu e amadureceu com sua audaciosa protagonista. Ao mesmo tempo, via-se na obrigação de cativar um público adolescente recém-chegado para renovar seus espectadores e criar apelo entre os mais jovens. Talvez por isso a irmã mais nova de Buffy tenha sido apresentada subitamente no primeiro episódio na quinta-temporada, em uma tentativa de dinamizar a relação com essa nova audiência.

E se a aposta da sexta temporada gerou incertezas, no último ano Whedon reequilibrou todos os elementos que tinha posto na mesa para marcar um ponto final na sua história (embora o enredo tenha sido mais tarde retomado nas HQs): os poderes que antes eram reservados exclusivamente Buffy (com algumas notáveis exceções)  foram partilhados para várias outras meninas, que desempenham papel crucial no fechamento da série. De certa forma, o mesmo movimento aconteceu como o seriado: seja na forma de narrar historias de fantasia, seja no protagonismo feminista que ajudou a avançar ou nos temas de que tratou, ainda existe um pouquinho dos poderes de Buffy em várias das narrativas televisas exibidas na atualidade.