Foto: Divulgação Netflix
Acompanhamos, nos últimos anos, um aumento inquestionável de produções audiovisuais que apresentam diversas questões em torno do racismo: A 13ª emenda, The Mask you live in, Moonlight, I am not your negro, Dear White people, entre outros. Todas elas inserem discussões não apenas exclusivas ao racismo e explicitam que há múltiplas relações entre racismo, desigualdade social e sociedade patriarcal e que, portanto, essas são questões que devem ser pensadas de maneira articulada.
O primeiro, um documentário produzido pela Netflix, exibe, através de uma série de entrevistas com pesquisadores e investigação histórica, a relação existente entre o arcabouço legal estadunidense e um sistema excludente que deixa negros à margem e os encarcera. Fica patente que o sistema legal é estabelecido a partir de uma construção social que coloca o negro no lugar do outro, perigoso, que ameaça o bem-estar da sociedade americana.
São os negros, apesar de não serem majoritários na totalidade da população dos Estados Unidos, que representam a maioria dos que estão presos. As leis reafirmam esse lugar de exclusão. Nada que esteja tão afastado do contexto brasileiro, marcado por uma situação muito semelhante na proporção de presidiários negros e com decisões judiciais que provocaram polêmica, como a que levou à prisão Rafael Braga, único mantido preso durante as manifestações de junho de 2013, posteriormente condenado por, segundo policiais, portar rojões e entorpecentes. Ele nega e acusa os policiais de agressão.
O segundo, The Mask you live in, mais um documentário, explicita a relação entre raça, patriarcalismo e gênero, evidenciando que também homens, em sua maioria negros, são vítimas de referências machistas sob as quais estão alicerçadas nossas sociedades (novamente, o ponto de saída é a sociedade americana, mas correlações contextuais podem ser feitas com as realidades brasileiras). Homens são criados para não expor seus sentimentos e o aspecto violento se amplia em regiões marginalizadas, onde vive a maioria da população negra americana.
The Mask you live in deixa evidente que, se mulheres são alvos de demonstrações explícitas de machismo, cultura do estupro e feminicídio, os homens são tolhidos na sua possibilidade de demonstrar fraqueza e afeto. É elucidativo neste sentido que, na sociedade americana, homens se suicidem cinco vezes mais que mulheres a partir da adolescência. Que a depressão se expresse em revolta e não em tristeza aparente.
O documentário demonstra ainda o quanto é defendido que homens escondam qualquer traço que seja, supostamente, feminino. Não à toa que o bullying nos colégios, tanto lá quanto cá, tem como principal ofensa chamar o colega de “mulherzinha”. Além da divisão de atividades e brinquedos entre meninos e meninas.
Outro dado que chama a atenção no documentário é a quantidade de homens envolvidos em violência. Um dos entrevistados afirma que abordamos as questões sociais da violência, mas não destacamos as de gênero. Ele argumenta que, mesmo vivendo em lugares tão pobres e violentos quanto os homens, as mulheres se envolvem muito menos em casos desse tipo. O que está por trás? A cultura que incentiva os homens a “não levar desaforo pra casa” e demonstrar o seu poder com força.
Caminhando neste sentido, Moonlight, a ficção ganhadora do Oscar 2017, estabelece sua narrativa também justapondo questões raciais, sociais e sexuais. A trama que aborda a história de um negro gay americano que, vivendo em uma sociedade excludente, tendo que lidar com uma mãe viciada em drogas, cria barreiras sociais em torno dos seus afetos, sua sexualidade, e troca um futuro potencialmente promissor para se tornar um traficante bem sucedido – desculpem os spoilers – é uma forte denúncia de como as sociedades têm construído relações sociais em que exclusões são sobrepostas através das relações de poder hegemônicas.
Moonlight, ao construir seu enredo, aponta para uma possibilidade de resistência que, por vezes, é negligenciada: o afeto. É o afeto exposto em cenas – como a final (evitarei outro spoiler) e a do banho de mar sob a luz do luar – que indicam que afeto, prazer, instâncias que extrapolam o racional e o estritamente compreendido como político são lugares importantes para que observemos possibilidades de resistência em nossas vidas cotidianas. Aqui, me articulo a uma série de autores que têm defendido a importância de problematizar corpos como lugares pelos quais passam relações de poder e possibilidades de resistir. Foucault, Mouffe, Martín-Barbero, Grossberg, entre outros. Cada um deles apontando para especificidades distintas das imbricações entre poder, corpo, gênero, raça e vida cotidiana. E alguns deles defendendo que não dissociemos discussões de identidades às de estrutura econômica.
Prazer como possibilidade de resistência e a incidência das relações de poder em nossas vidas cotidianas também estão presentes em Dear White people, série produzida e lançada pela Netflix em 2017, inspirada em um filme homônimo lançado em 2014. Num dos melhores diálogos da série, a personagem Joelle Brooks, interpretada pela atriz Ashley Blaine Featherson, defende que um negro PODER ter prazer e se divertir num sábado à noite também é um ato político e explicita como as relações de poder incidem, inclusive, sobre a maneira pela qual nos relacionamos com nossos corpos.
A trama de Dear White people tem como cenário a universidade Winchester e se desenvolve em 10 episódios de, aproximadamente, 25 minutos cada um. A série foi envolvida numa polêmica antes mesmo de estrear, com diversos usuários cancelando suas assinaturas da empresa produtora, acusando-a de “racismo reverso”, entre outras “denúncias”. Repercussão que reforça a principal força narrativa da série, que é abordar as falhas existentes em torno do discurso de igualdade racial nos Estados Unidos. Falar de racismo foi o suficiente para que usuários da Netflix se sentissem incomodados a ponto de fazerem petições defendendo o cancelamento – da série e das assinaturas. Nada que deva ter assustado o setor de negócios da Netflix, que está longe de ser uma empresa de benfeitoria e viu seu número de clientes aumentar em mais 3,57 milhões no terceiro trimestre de 2016.
Os 10 episódios são apresentados como capítulos e cada um destes apresenta um dos protagonistas da série. Pessoas negras diferentes, com trajetórias diversas, questões pessoais distintas e com variadas maneiras de agir politicamente e de serem vítimas do racismo e do patriarcalismo – ainda que a questão racial se sobreponha, a série aborda questões de outras minorias, como as mulheres e os gays. Dear White people aposta numa construção narrativa em que os personagens são apresentados separadamente, com o enredo sendo construído em pequenos flashbacks. Estes sendo utilizados para revelar nuances não mostradas nos episódios anteriores e as diferentes vivências dos personagens na sua relação com questões de gênero e etnia.
Por fim, I am not your negro também aponta para como o racismo é estabelecido em nossas vidas cotidianas. A partir dos escritos de James Baldwin, apresentados em off pela voz do ator Samuel L. Jackson, nos aprofundamos nas origens e consequências da estrutura racial e social que caracteriza a sociedade americana. A narrativa do documentário é construída a partir de entrevistas de Baldwin e inserções de imagens de atos políticos contra o racismo no passado e no presente. Além de imagens de violência policial contra negros hoje, e negros enforcados em tempos passados.
Imagens apresentadas sob um interessante jogo de cores, em que algumas, do passado, foram coloridas, enquanto imagens atuais foram apresentadas em preto e branco. Escolhas que explicitam que, apesar das questões terem se alterado com o passar dos anos e o país mais poderoso do mundo ter eleito seu primeiro presidente negro, ainda permanece a estrutura que coloca os negros na posição de excluídos, podendo imagens do passado serem atuais e imagens do tempo presente serem do passado. Afinal, não há tanta distância entre as mortes de Trayvor Martin, Martin Luther King e Malcom X – a relação de Baldwin com ambos é tratada no filme – se tomarmos o racismo estrutural e cotidiano como principal motivador para elas.
O documentário indicado ao Oscar 2017, que após exibição restrita no Brasil foi exibido no último sábado (13 de maio) no canal a cabo Globo News, é encerrado com a seguinte declaração de Baldwin:
“o futuro do negro neste país é precisamente tão brilhante ou tão sombrio quanto o futuro do país. Ele depende inteiramente do povo americano e de nossos representantes. Depende inteiramente do povo americano. Se eles vão ou não enfrentar e lidar e abraçar o estranho a quem eles têm demonizado por tanto tempo. O que os brancos têm que fazer é tentar descobrir em seus corações por que foi necessário ter um “preto”, em primeiro lugar. Por que eu não sou um “preto”, eu sou um homem. Mas se vocês dizem que eu sou um “preto”, significa que precisam dele. A pergunta que a população branca deste país tem que se fazer, a do Norte e a do Sul, porque somos um país só, e, para o negro, não há diferença entre o Norte e o Sul. A diferença está na forma como eles castram você. Mas o fato da castração é um fato americano. Se eu não sou o “preto” aqui e vocês o inventaram… vocês, os brancos, o inventaram, então vocês têm que descobrir por quê. E o futuro do país depende disso, fazendo essa pergunta ou não”.
Os produtos audiovisuais analisados, portanto, nos indicam que os problemas expostos e convocados por eles em suas narrativas demandam serem pensados numa chave interpretativa que coloque em relação cultura, economia, política e sociedade. Apontam para o fato de que as relações de poder que incidem sobre identidades se articulam às estruturas de ordem econômica e se inserem em nossas vidas cotidianas, em nossos corpos e formas de viver, às maneiras de dominação e às possibilidades de resistência, em que afeto e prazer também devem ser considerados como potências de ação política.