No Grammy de 2018, Jay Z teve oito indicações e nenhum prêmio. Beyoncé, que era cotada como grande favorita ao prêmio de melhor álbum por Lemonade em 2017 – disco em que assume posição contra o racismo e a favor do feminismo em um contexto estadunidense de acirradas disputas em torno das questões de direitos humanos, sobretudo após a eleição do presidente republicano Donald Thrump – ouviu, da plateia, a cantora branca e inglesa Adele dizer que “Não posso aceitar este prêmio. A artista da minha vida é Beyoncé. O seu álbum ‘Lemonade’ é tão monumental, tão bem concebido, tão belo e tão cheio de alma. O jeito com que você fez meus amigos negros se sentirem é empoderador[1]”. Em meio a uma polêmica sobre a relação entre o Grammy e a premiação de artistas negros que se tornou pauta importante acerca da premiação nos últimos anos[2], o discurso de Adele foi elogiado e divulgado em vários veículos de imprensa como algo tão tocante que levou Beyoncé às lágrimas. Protagonistas que são no universo da música pop e da própria indústria musical americana, Jay Z e Beyoncé aparecem em Apeshit – primeiro clipe das canções de Everything is Love, álbum que assinam juntos enquanto casal, Os Carters, e que foi lançado de surpresa no dia 16 de junho de 2018 – com o que parece ser uma resposta forte e bem articulada à situação racial na indústria da música pop.

O clipe, gravado no Museu do Louvre, começa com a imagem de um homem negro, agachado em frente ao Palácio onde hoje se situa o museu, e com asas de anjo. A câmera que guia o olhar do espectador na primeira tomada feita dentro do museu continua propondo um olhar para o detalhe das obras, a pele branca das figuras sacras, a pele escura do anjo mau que aparece no centro da pintura de um dos tetos. Em frente à ‘Monalisa’ de Leonardo da Vinci, provavelmente a obra de maior visibilidade e reconhecimento público exposta ali, sozinhos – situação praticamente impossível para um visitante comum que precisa disputar lugar com uma quantidade significativa de outros visitantes – Jay-Z e Beyoncé aparecem absolutos em ternos coloridos – o dela rosa choque, o dele verde água. Mas se a Gioconda retratada pelo pintor italiano não porta adereços para além do seu enigmático sorriso, o casal estadunidense ostenta joias chamativas – correntes, colares, brincos.

 

Em frente à ‘Vitória de Samotrácia’, a escultura grega, em pedra, de uma deusa que tem lugar de destaque nas escadarias do museu, Beyoncé e Jay-Z aparecem com roupas brancas – ele um terno e ela um vestido volumoso com um corte estruturado que lembra também uma escultura – enquanto bailarinas, em sua maioria negras, com roupas da cor de suas peles, se movimentam em sincronia nas escadas. O movimento suave desses corpos que dançam contrasta com a imobilidade da pedra esculpida tanto em sua materialidade quanto em relação à suposição de um cânone estabelecido de beleza. Ainda que os corpos das bailarinas no clipe de Apeshit não sejam exatamente diversos em relação a um padrão de peso e estatura, por exemplo, a plasticidade dos movimentos que elas repetem em sincronia ocupa a cena em primeiro plano, desbancando a atenção que se costuma dar, por exemplo, a ‘A Coroação de Napoleão’ quando se está em sua presença no museu.

Beyoncé e Jay-z posam em frente à escultura ” A Vitória de Samotrácia” no topo de uma das escadaria do Louvre enquanto bailarinas dançam nos degraus abaixo deles (fonte: clipe de Apeshit disponível no Youtube)

Bailarinas do clipe dançam em escadaria do Museu do Louvre (fonte: clipe de Apeshit disponível no Youtube)

Assim, o clipe reclama a reconstrução de um sentido de plasticidade tanto em relação ao padrão dos corpos dispostos, quanto em relação ao que se entende por arte – ou por quem tem o poder de definir o que é arte, o que seja um melhor álbum – colocando no centro daquilo que apresenta como obra para o seu espectador, o clipe musical, disputas em torno da cultura popular, das apropriações feitas pela indústria cultural dessa cultura popular, e também corpos negros e femininos que reclamam um lugar de existência e reconhecimento mesmo em frente à ‘Monalisa’.

Nesse sentido, é impactante o momento em que o clipe suspende a parte cantada da música e ficamos, enquanto espectadores, com um momento instrumental iniciado por uma espécie de som metálico semelhante ao de um gongo que se prolonga dando destaque às cenas visuais, guiando o olhar do espectador para cenas cotidianas das quais os corpos negros costumam ser apagados. Ao justapor as cenas de um casal trocando carícias num quarto, alguns rapazes em um vestiário, duas bailarinas sentadas em frente a uma obra no museu, a imagens de obras clássicas em que os corpos são quase sempre, por padrão, brancos, ao mover-se naquele espaço costumeiramente visto como sagrado, em frente a obras como ‘A Coroação de Napoleão’, os corpos que surgem no clipe de Beyoncé desafiam o que se entende por belo e por sagrado, mas o fazem sobretudo dialogando com uma série de referências que permitem que eles se afirmem como o que há de sagrado, de belo, como o que representa o cânone do pop.

Cena de Apeshit em frante à obra
“a coroação de napoleão”, de Jacques-Louis David (fonte: clipe de Apeshit disponível no Youtube)

Um casal se beija em um quarto em uma cena cotidiana exibida no clipe em meio a trechos que exibem obras de arte expostas no Museu do Louvre. (fonte: clipe de Apeshit disponível no Youtube)

Beyoncé e suas bailarinas dançam em frente à “Coroação de Napoleão”, de Jacques-Louis David (fonte: clipe de Apeshit disponível no Youtube)

Ao afirmarem insistentemente na letra da música que “I can’t believe we made it”, ou “não acredito que conseguimos” em tradução livre, Beyoncé e Jay-z não negam consciência do poder que representam na indústria musical hoje e reafirmam esse poder em pleno Louvre, instituição que representa com muita força a tradição de arte definida por padrões eurocêntricos e à qual o acesso deles é permitido justamente porque eles são quem são – ela, por exemplo, a mulher mais bem paga na indústria musical no mundo em 2017, segundo a Forbes[3]. Os Carters, no Louvre, em frente à Monalisa, afirmando que não acreditam que conseguiram, reafirmam, sobretudo, um triunfo apesar dos padrões, apesar da constituição de uma indústria na qual poucos lugares de poder são ocupados por pessoas negras e, menos ainda, por mulheres negras.

Ao tomar o Louvre como lugar de exibição de seu próprio poder, Jay-Z e Beyoncé atribuem ao museu um lugar de chancela, de autorização, de exposição de um cânone consagrado sobre o que é arte, beleza e poder do qual também se apropriam como forma de consagração. Ainda que a disputa que mantém aberta com o Grammy na letra da música – um dos versos diz “Tell the Grammy’s fuck that 0 for 8 shit” ou “Diga ao Grammy para se foder com essa merda de zero por oito” em tradução livre – reivindique um lugar de independência em relação aos lugares de consagração da indústria musical, ao se apresentarem no Louvre, Os Carters colocam a si mesmos em um lugar de consagração canônico, se apropriando de formas cuja historicidade foi definida em relação a centros conservadores de poder – econômico, político e cultural. O pedido de respeito a seu dinheiro e de pagamento em equidade para que não invertam as coisas que ecoa na voz de ‘Yoncé’ em um dos versos  de Apeshit (Gimme my check/ Put some respect on my check/ Or pay me in equity, pay me in equity/Or watch me reverse out the debts) ressoa essa tomada de lugar. We can believe they made it.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=ctuggqUSITM

[2] Veículos importantes da imprensa tem dado atenção ao assunto. Em 2015, a Rolling Stones americana questionava, nesse artigo <https://www.rollingstone.com/music/music-news/do-the-grammys-have-a-race-problem-62956/>, se o Grammy tinha um problema racial por conta da não indicação de negros para melhor artista ou melhor gravação do ano. Em 2017, a não vitória de Lemonade foi assunto para a Forbes <https://www.forbes.com/sites/melindanewman/2017/02/13/was-beyonces-lemonade-too-black-to-win-grammy-for-album-of-the-year/#2402742939c2>, para a Rolling Stones americana <https://www.rollingstone.com/music/music-news/grammys-2017-5-reasons-why-adele-won-album-of-the-year-instead-of-beyonce-118375/>, para o USA Today < https://www.usatoday.com/story/life/music/2017/02/13/why-beyonce-lemonade-lost-the-grammys-why-she-should-have-won/97847070/> e também para os ingleses The Telegraphy https://www.telegraph.co.uk/news/2017/02/15/grammy-president-insists-awards-not-racist-beyonce-snubbed-favour/  e The Independent https://www.independent.co.uk/voices/beyonce-adele-grammy-lemonade-25-didnt-win-african-american-black-racism-knows-a7577451.html . No Brasil, o colunista Tony Góes, da Folha de São Paulo, também pautou o assunto: <https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/tonygoes/2017/02/beyonce-perdeu-o-grammy-de-album-do-ano-por-causa-do-racismo.shtml>

[3] https://www.forbes.com/sites/zackomalleygreenburg/2017/11/20/the-worlds-highest-paid-women-in-music-2017/#34a7e00a4e15