Achou que não teríamos crítica do Choque de Cultura no Palimpsestos? Achou errado, otário! Se você se sentiu levemente indignado com a primeira linha desse texto, não está muito atento aos fenômenos da internet. É mais ou menos assim que o personagem Rogerinho do Ingá, do Choque de Cultura, dá as boas-vindas a seu público no programa de paródia de crítica cultural da TV Quase, o coletivo de humor responsável por produtos tão díspares quanto a produção da animação Irmão do Jorel, O Último Programa do Mundo e o Falha de Cobertura, que esteve no ar, nos meses de junho e julho, para comentários sobre os jogos da Copa do Mundo.

Para o caso de você ainda não ter visto o Choque de Cultura (e aqui cabe a nossa indignação), ele é apresentado por um quarteto de motoristas de vans e kombis (na verdade, “pilotos”, porque nós sabemos da seriedade do trabalho deles) que comentam cultura (menos música, porque música não é cultura, e ambiente de música é ambiente de droga). Dá para perceber que uma das práticas mais comuns dos fãs de Choque de Cultura é repetir os bordões dos personagens, inserindo essas frases sem sentido em toda e qualquer oportunidade, incluindo este texto.

Compõem o time de pilotos Rogerinho do Ingá, apresentador, e os comentaristas Julinho da Van, Maurílio e Renan, interpretados pelos humoristas Caito Mainier, Leandro Ramos, Raul Chequer e Daniel Furlan, respectivamente. O programa se dedica a comentar filmes, mas também algumas séries, como o produto da Netflix, Stranger Things. Na configuração do programa, cada um deles possui uma personalidade distinta. Em diversas entrevistas concedidas pelos integrantes da TV Quase, Rogerinho do Ingá é descrito como um psicopata autoritário cuja responsabilidade é fazer o programa andar. Como Rogerinho quer garantir que o programa não tenha problemas, seu autoritarismo o leva a se expressar com violência para evitar que os seus companheiros falem alguma besteira.

Maurílio é responsável por fazer os comentários “mais técnicos”, pois transporta equipes de cinema em sua Kombi retrô. O seu conhecimento sobre cinema e a postura teatral com a qual se expressa, em referência a apresentadores de programas “cults”, lhe rendeu o apelido de “palestrinha”, dado por seu colega Julinho da Van, que é reconhecido por mandar recados de interesse pessoal, quase nunca ver os filmes, e se opor a tudo o que Maurílio fala. Já Renan oscila entre comentários pessoais, com destaque para Renanzinho, seu filho, que nunca aparece, mas é quase um dos personagens do programa de tão citado, além de fazer as observações mais nonsense sobre os filmes criticados.

A citação a produtos culturais brasileiros é uma marca constante do Choque de Cultura, que acaba convocando competências culturais de quem o assiste. Logo no primeiro vídeo exibido sobre Animais Fantásticos e onde habitam – ou como classifica a equipe do programa, um “Harry Potter sem Harry Potter” – há a menção a Supla, Conrado, Faustão, Sérgio Mallandro e Bruno de Luca, sendo os quatro primeiros, presenças em filmes infanto-juvenis brasileiros da década de 1980-1990; e o último, ator e apresentador e também alvo de constantes piadas na internet.

Todas essas referências audiovisuais são requisitos para compreender a construção de sentidos empreendida pelo Choque de Cultura e se engajar no tipo de humor proposto. Não só rimos das piadas feitas a partir dos filmes que são conhecidos mundialmente. O humor também está no tipo de programa cultural que está sendo construído por motoristas de transporte alternativo que têm veneração pela franquia Transformers e filmes de ação do The Rock. Dessa forma, o programa aciona as competências culturais de um público que cresceu assistindo à televisão e blockbusters, e tem nos produtos culturais uma parte importante da construção de suas identidades.

Guiados pela nossa memória televisiva, rimos da tentativa de fazer um programa televisivo que brinca e subverte, através do humor, os programas higienizados e enquadrados em regras específicas de determinados gêneros, movimento que é tendência em outros programas da atualidade. Utilizar a paródia de programas televisivos para elaboração dos seus programas humorísticos é uma marca da TV Quase. A maioria dos seus programas, assim como o Choque de Cultura, faz piada com as estruturas de programas comuns da televisão. O Falha de Cobertura tem como tema as mesas redondas de futebol, fazendo rir dos maneirismos de comentaristas e fãs do esporte, assim como o Último Programa do Mundo apela para o nonsense para fazer piada a partir da construção de um programa caótico. Esse tipo de paródia faz lembrar o humor da TV Pirata e dos subsequentes programas humorísticos que também utilizavam esse artifício, como o Casseta e Planeta.

O Choque de Cultura faz ainda referência declarada a produtos visivelmente toscos, como o Serginho Total, programa regional, de poucos recursos, recorrentemente citado pelos humoristas como inspiração estética e de linguagem: cenários simplórios, erros propositais de condução dos apresentadores no programa e usos desastrosos de recursos audiovisuais. E relações não tão declaradas com outros produtos, como o programa humorístico Hermes e Renato, exibido pela MTV no final da década de 1990, início dos anos 2000. O inusitado das situações e comentários, o retrato exagerado da caracterização, vários dos elementos que tornaram Hermes e Renato reconhecidos, estão presentes no Choque de Cultura.

Por fim, outro elemento importante para compreender o programa é a articulação com outros modos de fazer humor. Tal qual o que aconteceu com o Porta dos Fundos, outro canal famoso de humor no Youtube, o programa cultural sobre cinema é citado reiteradas vezes como uma inovação importante nessa área. Os embates sobre sentidos do humor levantados pelo canal podem ser vistos na entrevista concedida por Raul Chequer e Leandro Ramos ao programa Pânico, na rádio Jovem Pan, no dia 14 de março de 2018 . Nessa entrevista, Chequer e Ramos entram em embate com o apresentador e humorista Carioca que defende o direito do humor ofender determinados grupos sociais. Em resposta, Raul Chequer afirma: “A questão, pra mim, não é se ofender ou não se ofender no caso, porque eu posso. A gente pode brincar aqui e tal. Posso fazer uma piada sobre o Ronald que seja extremamente agressiva e que seja engraçada e, bicho, ele leva numa boa. Pra mim, o grande lance que eu acho no humor, e que eu evito no nosso trampo, é o seguinte: você tem o momento ali, que você, muito certeiro, numa piada, que é um momento de graça, desarma todo mundo quando você atinge esse momento de piada e tal. Eu acho muito merda usar desse momento, usar de humor pra perpetuar preconceitos, sacou?”.

Ou como diz Rogerinho do Ingá em uma declaração no Choque de Cultura que virou meme, durante os comentários em relação ao filme A Forma da Água: “Esse filme A Forma da Água fala sobre preconceito e a gente não vai tolerar preconceito aqui nesse programa, já vou logo avisando, hein? Se a mulher vai casar com peixe, ela vai casar. Preconceito é coisa de cigano. E Choque de Cultura é diversidade. E quem pensar diferente aqui vai entrar na porrada”. A ironia é evidente: ao pregar o respeito à diversidade, o Choque de Cultura convoca um preconceito aos ciganos e diz que quem divergir será agredido. Ao evidenciar a violência característica da construção de uma determinada masculinidade expressa na postura e nas falas de Rogerinho do Ingá, faz a defesa do contraditório sem sair da personalidade bruta dos personagens encarnados por eles e nos faz rir não da perpetuação de antigos preconceitos, mas das construções sociais hegemônicas da nossa sociedade.