A volta dos que não foram – O Último Programa do Mundo na era pós-apocalíptica

“De onde viemos? Para onde vamos?”. Esse é um dos questionamentos levantados por Daniel Furlan, no terceiro episódio (ou episódio #55) da nova temporada do Último Programa do Mundo (UPM), exibida em 2017 pela FOX.

Bom, no caso do UPM, o programa estreou pela primeira vez na televisão brasileira em 2013, no último mês da extinta MTV Brasil no ar, e buscava justamente, através de pistas deixadas ao longo da história do canal, entender o que levou a MTV a chegar a esse ponto tão crítico. Era nesse momento de perigo e destruição iminente que se desdobrava a saga de um apresentador e quase ex-VJ Daniel Furlan e do seu assistente de palco, o Vice-Cônsul de Honduras (Juliano Enrico), face a um futuro desconhecido. Cercado de dúvidas e expectativas para o que viria seguir, a MTV Brasil abriu espaço para os questionamentos e o retorno ao seu passado, a partir do UPM e seu caldeirão de anarquia e humor sem-noção.

Considerando este um momento crucial da emissora, analisei em 2017, no meu trabalho de conclusão de curso intitulado O Início Do Fim – Uma Análise dos Modos de Endereçamento em O Último Programa do Mundo da MTV Brasil, as estratégias comunicacionais utilizadas pelo canal na criação e produção do programa. Me debruçando sobre alguns autores dos Estudos Culturais ingleses, me servi do método de pesquisa desenvolvido pelo TRACC, os modos de endereçamento e seus operadores de análise, para observar e tentar entender como tais elementos se constituem e caracterizam o UPM, atrelado ao gênero midiático do humor e articulado com outros gêneros televisivos.

Quase seis anos após o “fim do mundo”, que no imaginário d’ O Último Programa do Mundo significa o encerramento das atividades da MTV Brasil e consequentemente do programa, a atração de humor nonsense criada por Furlan e Enrico voltou à TV brasileira, dessa vez na FOX, canal fechado de séries e variedades. A primeira temporada foi exibida na MTV Brasil; a segunda foi produzida de forma independente e compartilhada no próprio canal oficial do grupo Quase no Youtube, com Furlan entrevistando anônimos para o programa e, paralelamente, buscando o Vice-Cônsul, desaparecido após o apocalipse. Além das duas primeiras, a terceira temporada foi compartilhada a partir de janeiro de 2018 pelos criadores no canal oficial do grupo, meses após ter sido exibida na FOX. O grupo Quase começou como uma revista em quadrinhos, escrita e ilustrada por um grupo de amigos, e depois se tornou um canal de humor no YouTube, com esquetes, programas esportivos e séries.

Já no primeiro episódio da nova temporada (ou o #53, se você considerar a contagem oficial dos criadores), o entrevistado é “João Rosa, o ‘Vidente dos Famosos”, que faz “previsões catastróficas para a nova temporada do programa”. No segundo episódio, a convidada é uma flanelinha que escreve placas com dizeres e as espalha pela cidade. Como explica o apresentador: “O Rogerinho (do Ingá, vivido por Caito Mainier) falou que você faz umas placas aí, umas placas meio de apocalipse (…)”. No mesmo episódio, Furlan pergunta para a entrevistada como ela quer ser descrita no gráfico do programa: “eu pensei em ‘Profeta apocalíptica de rua”, “Ed Mota ou apocalipse?”.

E, assim, o tema de fim do mundo continua cercando o programa, seus mediadores e convidados. No episódio seguinte, no qual a entrevistada é a cantora gospel Esdras Camargo, Daniel a indaga:

 

– Você acredita no apocalipse?

– Acredito.

– Mas como é que é, isso quer dizer que o mundo vai acabar?

– O mundo não vai acabar. O mundo já está se acabando.

 

Após conversarem um pouco sobre o fim dos tempos e outros assuntos, Daniel introduz o momento “Tapa na cara coletivo”, no qual as pessoas da equipe que estão nos bastidores começam a se estapear e a quebrar os objetos dentro do estúdio, transformando o cenário em uma desordem. Assim que a confusão acaba, o Vice-Cônsul leva um púlpito para Furlan, que começa a recitar um dos capítulos da Bíblia, em uma passagem que retrata um episódio de caos na Terra ou um presságio do apocalipse.

No programa exibido em 2013, Furlan dizia: “(…) qual o futuro desse programa, você me pergunta. Acorda Brasil! Não existe futuro! Acabou e acabou hoje! É isso mesmo que você tá pensando! Acabou! Desculpa Brasil. E isso é maravilhoso, porque só nesse clima de apocalipse é que a gente pode ter as atrações do programa de hoje. (…) Abraça a gente Brasil, vem com a gente. Quem queria fugir já fugiu, porque essa emissora tá pegando fogo a muito tempo. Então chora neném!”. Quatro anos depois, em 2017, o’ Último Programa do Mundo volta para a TV e é descrito como “um talk-show” que, “num mundo pós-apocalíptico, resiste em um estúdio obsoleto, sem direção, sem anunciantes, sem propósito.” A certeza do fim em 2013 dá lugar a uma dúvida em relação ao que fazer após, o que há para os sobreviventes que “resistem” nesse mundo pós-apocalíptico?

Podemos notar que, apesar dessa nova temporada não ser vinculada a nenhum momento crítico da FOX, como foi o caso da MTV Brasil, onde a ideia de caos e de fim estava evidente, o tão temido “apocalipse” continua permeando todo o programa. Ainda que não esteja voltado para a tensão de que tudo irá acabar, o UPM na FOX parece ainda querer entender como se configura essa nova fase, não à toa o primeiro convidado da nova temporada é um vidente.

Não é mais necessário que o espectador possua uma bagagem cultural prévia relacionada ao universo da MTV Brasil, mas, como observado em todos os episódios disponibilizados no Youtube, o UPM ainda traz muitas referências das temporadas anteriores, como a esfinge quebrada (destruída e “sequestrada” na temporada da MTV e resgatada na temporada independente) e até mesmo os personagens que compõe o imaginário do programa, como o Homem-Galinha e o Poeta. Não é preciso ter assistido aos outros 52 episódios, mas vai fazer um pouco mais de sentido para aqueles que já estejam familiarizados com o UPM. Um exemplo é a forma como tanto o apresentador, como os convidados são descritos nos gráficos. Daniel Furlan não é apenas um apresentador, mas sim “vazio por dentro” (episódio #54) ou “apresentador e filha de militar” (episódio #58).

Por terem saído de uma emissora “falida”, a MTV Brasil (a MTV passou a ser operada em TV fechada pela Viacom), algumas mudanças na atração podem ser percebidas, como na vinheta, mais moderna, no estúdio que parece maior e na quantidade de pessoas na equipe também aumentou. O cenário do programa continua sendo um chroma key, uma mesa, um lugar para o convidado sentar e algum objeto de cena destruído ou antigo. Neste caso, os convidados agora sentam em um sofá, a mesa é maior e mais robusta e ao fundo pode-se perceber dois pilares para enfeites, que não são usados para nada, e um extintor, que também fazia parte do cenário na época da MTV Brasil. E, claro, a esfinge destruída, única coisa que fica em cima da mesa de Furlan.

Mesmo o programa tendo sido “repaginado”, detalhes essenciais que existiam na primeira temporada foram mantidos nesta nova, como a vinheta em que o Vice-Cônsul de Honduras diz a classificação indicativa, as imagens de destruição projetadas no chroma e presentes na vinheta de encerramento e a tipografia e imagens de vídeo utilizadas, que remetem ao alfabeto russo e ao “futurismo soviético” da corrida espacial. Além de que, ao longo dos episódios, o Vice-Cônsul continua alimentando Furlan durante o programa, e eventualmente atacando-o e jogando nele as comidas, o que faz com que as roupas do mediador fiquem sujas e destruídas e os móveis do cenário quebrados.

Nesse mesmo viés, a organização temática do programa também continua na mesma lógica (ou na falta de!). O UPM na FOX manteve a grande maioria dos quadros e momentos mais recorrentes na temporada inicial, como o “Quadro antes do começo do programa”, no qual ele faz um momento de reflexão junto ao telespectador, o momento Stepan Nercessian e o famosíssimo e provavelmente dolorido “Frases que valem tapa na cara”.

Além do apresentador (Furlan) e do assistente de palco (Enrico), se configuram também mediadores do produto os convidados, que agora nada tem a ver com a história da FOX, como era antes com a MTV, a equipe do programa e alguns personagens que agora se tornaram recorrentes em todos os episódios da nova temporada, como o idoso que canta versões em português de músicas grunge, Seu Getúlio; o Poeta de Sunga, que sempre aparece em momentos e lugares inusitados, vivido por David Benincá; Boquetitos, um fantoche que dá conselhos, dublado por Juliano Enrico; e Rogerinho do Ingá, personagem de Caito Mainier, que apresenta uma espécie de spin-off, o Choque de Cultura, programa de debates sobre filmes, constituído por ele e mais outros três motoristas de vans (personagens de Daniel Furlan, Raul Chequer e Leandro Ramos). Zico Góes, antes o diretor de programação da antiga MTV Brasil, agora é o diretor de produção e conteúdo do canal FOX, também creditado na vinheta de encerramento.

Da mesma forma como ocorria na MTV, Daniel Furlan está sempre dialogando com o telespectador, como quando, no meio de uma entrevista, o Vice-Cônsul posiciona o corpo de Furlan virado para a frente, fazendo-o perguntar “Mas vai ser difícil conversar com ela assim. Sem olhar, eu tenho que ficar falando com ela assim? (…)”. O Assistente então ajeita o corpo, posicionando-o dessa vez virado para a convidada, mas com o rosto direcionado para a frente. Ele continua: “Entendi. Valorizando aqui a câmera. Tenho certeza que é assim que eles fazem na televisão, em canal grande”. Depois ele pede desculpas para a entrevistada e complementa que assim “o pessoal de casa vai conseguir entender que eles estão conversando”. Aqui, não só Daniel se dirigiu a todas as pessoas em cena, o Vice-Cônsul e a entrevistada, mas também a quem está do outro lado da tela, além de evocar o fato de estarem em um “canal grande”, e não mais em uma emissora em crise.

Outra passagem que remete ao passado do programa na MTV é quando Daniel Furlan fala, no episódio #58: “Esse tipo de coisa que esse programa precisa. Esses relatos do dia a dia, da fila, do banco, da fila, enfim, fila.” Ou então: “Pra dialogar com jovem esse programa precisa de hashtag!” Tentar delinear o que o programa estaria precisando para estabelecer uma relação duradoura com a sua audiência nos leva de volta a um dos primeiros episódios da temporada inicial, quando o mediador, olhando diretamente para a câmera e conversando com o telespectador, acusa que “o que faltou na emissora foi fidelizar o cliente.” E completa: “Sim, eu te chamei de cliente, o cliente é você, otário!”.

Mediador, contexto comunicativo e organização temática são operadores de análise constituintes do método de análise dos modos de endereçamento, desenvolvido por Itania Gomes junto ao TRACC. O outro operador, o pacto sobre o papel do jornalismo, observa como um programa requalifica aspectos como normas, convenções, valores e recursos técnicos do telejornalismo. É o pacto que vai ditar para audiência o que esperar de um programa, quais expectativas são possíveis nesse compromisso entre produtor e público. Para aplicar este operador na análise do UPM foi preciso adaptá-lo à atração, ou seja, considerar o pacto sobre o papel de um outro gênero midiático, nesse caso do humor, e não do jornalismo, uma vez que, mesmo se tratando de um programa híbrido em termos de gênero midiático e sendo descrito em todos os textos oficiais como um talk-show, é notável a condição proeminente de programa humorístico, inclusive quando se leva em conta o histórico dos seus criadores.

Regado a muito humor nonsense, o UPM manteve na terceira temporada a veia sem-noção e caótica, com uma estética própria, amadora e tosca, marcas que já estavam presentes e constatadas na primeira temporada, fato que pode ser explicado pela atração ter sido uma produção da MTV Brasil, canal que possuía em sua grade de programação diversos programas com essa identidade. Claro que a terceira temporada, exibida pela FOX, um canal de TV a cabo, mais de quatro anos após ter ido ao ar por uma MTV Brasil com dias contados para acabar, é mais bem produzida, aparentemente com mais recursos e realizada em um contexto muito diferente do anterior.

Entretanto, a atração conseguiu manter a mesma essência e o mesmo timing humorístico de antes, seja à beira de um colapso mundial ou tentando sobreviver em um presente pós-destruição total.

Assista a todos os episódios de O Último Programa do Mundo no canal da Quase!

 

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Referências

O Último Programa do Mundo. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=9PjA6HxAZ6o&list=PLA2Gd9vTv5MUmWkCoUfLh-qeHJqz4rNE3 >

REIS, Manuela Oliveira dos. O Início do fim – Uma análise sobre os modos de endereçamento em O Último Programa do Mundo da MTV Brasil. 83 f. il 2017. Monografia – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.