Ou Bipolar Show: porque a implicância é mãe de todas as opiniões

Um cenário composto por uma bancada, uma cadeira para o entrevistado e um fundo excêntrico – duplicados –, uma plateia que se manifesta de acordo com o desenrolar da entrevista – e que às vezes interage com o palco –, um entrevistador que coloca perguntas provocadoras – ainda que vestido em um terno amarelo, um terno roxo ou estampado com flores imensas. À primeira vista, ou a uma vista menos atenta, o BIPOLAR SHOW, programa apresentado por Michel Melamed no Canal Brasil, parece um talk show comum – ainda que os cenários de bolinhas rosas ou listras pretas e brancas dêem pistas muito contundentes de que não estamos no terreno do comum. Muito rápido entendemos, contudo, que o que funciona ali é outra coisa, e difícil de explicar – porque dificilmente é uma coisa só. Cenário – e também o que está fora dele e entra no quadro –, enquadramentos de câmera, plateia, montagem final e, sobretudo, as atuações de Melamed e seus convidados fazem com que o programa nos faça, a todo tempo, hesitar entre a crença e a descrença, até que entendemos que o compromisso com a verdade jornalística, por assim dizer, não é exatamente o que busca Melamed.

Michel Melamed é uma figura que construiu uma trajetória bastante particular na cena cultural brasileira. O primeiro espetáculo teatral de sua autoria chamou bastante atenção à época de sua exibição: em “Regurgitofagia” (2004) Melamed recebia choques de um instrumento que transformava as reações sonoras da plateia aos textos recitados por ele em descargas elétricas. Hoje ele acumula as funções de ator – o que inclui novelas de sucesso da Rede Globo – poeta, diretor e autor teatral e apresentador de televisão. Quem acompanha sua trajetória e tem alguma lembrança do programa Re[CORTE] Cultural – apresentado por ele na TVE Brasil entre 2005 e 2008 – certamente vai se lembrar que já ali as entrevistas eram apresentadas entrecortadas, misturadas a fragmentos de entrevistas com outros personagens, trechos muito rápidos de programas de televisão em geral,– sobretudo de outra emissoras –, filmes etc. E parte do sentido do programa se construía pela montagem, pela sugestão de aproximações entre trechos, por exemplo.

No Bipolar Show, a montagem fragmentada mistura perguntas e respostas de duas entrevistas feitas em sequência e gravadas cada uma em um dos dois cenários do programa (nas duas temporadas a fórmula de dois cenários se repete ainda que o uso deles seja diferente). Essa montagem sugestiva se alia à expertise cênica de Melamed – e de parte de seus entrevistados – para criar uma mistura entre entrevista e cena. Em uma edição que foi ao ar na primeira temporada, em janeiro de 2016, a exibição com cortes e trechos entremeados nos apresenta um Johnny Massaro emocionado ao falar de seu pai taxista, de sua família inteira de taxistas. O ator chora e o enquadramento de câmera valoriza a lágrima, o que aliado à trilha triste parece querer emocionar também o espectador: “(…) me lembrou umas coisas que eu passei há pouco tempo. Quando eu era pequeno, meu pai tomava muito chimarrão e eu sempre tive uma aversão muito grande a esse gosto, a essa cor, a essa tradição. E de repente meu pai me falou: filho, toma o chimarrão. E eu tomei. E desde então eu sempre, quando tomo chimarrão, lembro do meu pai.” Na sequência da entrevista Melamed pergunta se o pai do seu entrevistado é vivo e o que faz. Somos informados de que ele é vivo e é taxista.

Toda essa sequência de perguntas e respostas é entremeada por um momento de interação com a plateia a partir de comandos simples escritos em placas exibidas por entrevistador e entrevistado. Assim, ao choro de Massaro são adicionados trechos de risos da plateia, de falas de Melamed, em cortes rápidos. Em meio ao momento de choro, Melamed, no segundo cenário – o preto e branco, esse no qual se desenrolou a interação com a plateia – pergunta a seu entrevistado: “é verdade que seu pai é taxista?” A resposta, categórica, é não. Mas, apesar do não categórico e com ares de resposta final, a sequência não termina ali, a ela se seguem risos da plateia e um trecho seguinte, no primeiro cenário (o branco com bolas rosas), em que um Massaro ainda aparentemente emocionado diz: “ele tem uma vaga no aeroporto.”

A primeira impressão do espectador, ainda no meio do desenvolvimento da sequência, é de que, talvez, a segunda entrevista, no cenário preto e branco, desminta a cena da primeira. Após a montagem oferecer mais informações sobre o pai taxista, entendemos que é a cena que importa e isso parece se confirmar com o resto da entrevista em que Massaro e Melamed refletem tanto sobre o ofício de ator, comum a ambos, quanto sobre o momento que partilham ali, a entrevista. Assim, Massaro diz: “entrevista é um lugar muito engraçado porque você tem que ficar colocando as coisas de modo consciente. Aí você em maior ou menor grau você acaba interpretando de alguma maneira ou se botando em algum lugar, mas quando eu vim pra cá eu vim pensando justamente que o melhor lugar para me colocar era não me colocar em lugar nenhum estando aqui.”

Se o exercício cênico e o ofício de ator são assunto entre os dois, eles são também forma, se materializam no cenário que é também um palco bastante favorecido pelos enquadramentos de câmera amplos, que destacam os dois. O que importa de verdade já não é saber se a história do pai taxista é verdade ou mentira, a discussão que o Bipolar provoca já é outra e ela reflete tanto sobre o ofício cênico de Melamed e de seu entrevistado – que é tomado como assunto e como prática – quanto sobre o formato do programa que eles constroem juntos ali. Se a presença da plateia, da bancada, do jogo de perguntas e repostas e mesmo de uma apresentação musical ao final de cada edição nos remetem às formas mais convencionais dos talk shows, essa forma é também ponto de partida para uma encenação que reflete sobre o próprio sentido da entrevista jornalística, da performance do entrevistador e das expectativas do entrevistado.

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A encenação e a sugestão da cena são importantes ainda que o entrevistado não seja também ator, ainda que a maior parte dos entrevistados da primeira temporada e todos da segunda o sejam. Assim, ao entrevistar o deputado Marcelo Freixo, Melamed inicia sua entrevista com uma pergunta aparentemente aleatória: “topa?”. Ao receber um sim como resposta, o entrevistador provoca: “o quê?”. A resposta “depende” é então a deixa para que ele entre com uma mala de dinheiro e coloque em cima da mesa – cena montada. A simples presença da mala ali é gatilho para uma conversa sobre ética e sobre política, mas que acontece em tom de brincadeira – enquanto Melamed diz: “você faria aquele negócio pra mim”, Freixo olha a mala, embora evite se aproximar demais, e comenta que o dinheiro ali é de verdade: “né banco imobiliário não”. Quando Melamed resolve oferecer dinheiro à plateia por um abraço, Freixo pergunta: “você tá vindo pelo abraço ou pelo dinheiro?”, deixando no ar uma questão fundamental em tempos de debate sobre a corrupção.

“Acho que o palco é um bom lugar pra envelhecer”

Na segunda temporada, a relação entre os dois cenários é colocada em evidência, já que os dois estão montados, em um palco, ao mesmo tempo. O destaque àquele onde se desenrola a entrevista é dado pela iluminação, que ora destaca um, ora destaca o outro. A iluminação, aliás, passa a ser um importante recurso cênico nos cenários, desta vez monocromáticos. Mas essa nova configuração deixa um destaque ainda maior para o palco – enquanto os dois cenários com bancada estão no fundo, o tablado que fica mais próximo à plateia acaba sendo o espaço mais usado.

E a grande vedete da segunda temporada é, de fato, o palco. Melamed e seus convidados o assumem de vez como espaço de interpretação e as entrevistas se completam ali, na cena, mais do que antes. Se com Marcelo Adnet as piadas sobre os próprios programas terminam em uma ‘suruba’ com frutas e a plateia, Débora Bloch canta, se mistura à plateia, apresenta Melamed com uma saudação teatral ao público. Entrevista e cena se misturam dando potência a uma reflexão sobre o ofício de ator que continua ali e se apresenta tanto na improvisação de cena apresentada à plateia com cada convidado, quanto na conversa que acontece entre a bancada e a poltrona. Débora Bloch diz: “você só consegue chorar quando você realmente tá relaxado. (…) Televisão tem esse problema, né? Que as pessoas às vezes te pedem pra chorar. O que eu considero um erro, eu acho que você chora se vier a emoção na hora da cena, o importante não é chorar nem a lágrima, é que a cena seja contada. Não necessariamente você tem que tá chorando.”

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No final do episódio com Débora Bloch, a conversa na bancada é sobre o aplauso. Eles comentam ser engraçado o fato de que começaram o programa no palco, agradecendo à plateia e que há várias formas de finalização de um espetáculo, mas que a expectativa é sempre do aplauso: “olha a dica”. Com dica ou sem dica, o público presente ali aplaude sempre.

*A tempo, a terceira temporada do programa já está confirmada e sendo gravada pelo Canal Brasil para exibição este ano ainda sem data de estreia anunciada.