Imagine um Brasil sem raça e não colonizado. Um Brasil reconstruído não mais da força das pessoas escravizadas, sedimentado em processo violentos de exclusão, mas de uma intervenção estético-política-intelectual que parte da Etiópia e desembarca não na “El Dorado”, ou nas “Américas”, mas em Liberdade. Essa é a fabulação crítica que visa extinguir a raça pelo nada simples gesto de tornar todos os sujeitos iguais, expressa no mais novo disco da cantora Urias, o Carranca(2025). O gesto fabulatório de Urias, aqui é lido sob as lentes de Saidiya Hartman (2008), que encara a fabulação crítica como um gesto especulativo e ético que, reconstrói histórias impossíveis, preenchendo lacunas dos arquivos coloniais para dar voz às vidas silenciadas.

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A chegada pelo mar é turbulenta ao se deparar com a promessa de uma “casa” de liberdade, que aqui lemos como o Brasil, em que pessoas são trazidas pelo mar com a promessa de uma civilização próspera e feliz. No instante da chegada a ilusão se desfaz: a liberdade cantada não é para todos. Na voz de Marcinha do Corintho, vemos a ideia ruir ante aos atos violentos coloniais: “No entanto, na entrada da casa, sou recusada, rejeitada, reprimida […] Me afastarei desta casa habitada apenas por ilusões e engodos/ Voltarei para o mar, rastejando se for preciso / Voltarei para as minhas águas e as minhas terras / E me vingarei”

O projeto de vingança revisita o imaginário de uma Etiópia ancestral, para recuperar suas forças e retornar para a vingança que consiste na reconstrução do Brasil. A artista propõe então um Brasil que não aconteceu, ao mesmo tempo que evoca o que poderia ter acontecido e ainda a tristeza de um Brasil colonizado. O fluxo do tempo atravessa a narrativa de maneira familiar ao que apontam os estudos decoloniais, em que presente, passado e futuro acontecem agora simultaneamente, não em linha contínua como o pensamento moderno pressupõe. A abordagem Também se aproxima do que é proposto por Leda Maria Martins (2002; 2021), em que o corpo, o canto e o tempo encruzilhado reconstituem memórias interrompidas.

E é pela interrupção que a narrativa de um Brasil não colonizado se desenvolve. Narrativa sedutora para quem deseja explodir esse mundo e construir outro a partir de referenciais muito próximos, dos quais a artista convoca ao remontar um país que a respeita, a inclui e lhe dá voz. Ao fabular um Brasil por vir, Urias ecoa aquilo que Denise Ferreira da Silva (2019) chama de “imagem de um mundo sem fora”. Um mundo que não precisa da diferença como marca hierárquica de existência.

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Em Etiópia, Urias canta: “Nos livros de história a gente vai estar”. O verso, reivindica presença em um arquivo que outrora a excluiu. O gesto que reescreve a História, e inclui o ponto de vista dos corpos que foram removidos desta narrativa dialoga diretamente com o que Manna, Vilas Bôas, Gomes e Ferreira (2024) chamam de contextualização radical do arquivo, operação que busca desestabilizar os regimes de poder que definem o que é digno de ser lembrado.

Ponto que se reforça na canção que encerra o disco, a qual Urias traz então um sample da canção O Guarany, de Carlos Gomes. Amplamente reconhecida por ser tema de abertura do programa de rádio A Voz do Brasil, que aqui anunciam os atos de um outro ‘estado novo’ tensionando o projeto de nação do jeito que conhecemos. A apropriação que Urias faz da canção põe em contradição a retórica oficial de brasilidade e a experiência concreta de quem foi historicamente apagada dela. Sob os versos que remontam o Brasil hegemônico que é exportado, a cantora reivindica o desejo de também querer viver nesse território igualmente fabulatório onde a diversidade cultural convive harmonicamente, e que todos são respeitosos e receptivos. Onde tudo se resume a samba, futebol e carnaval de rua.

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Ao acionar o hino da modernidade nacional, tão marcadamente reconhecido no imaginário nacional como um símbolo da voz institucional do Estado, Urias implode a ideia de um “Brasil universal” e reivindica um país possível, um Brasil reinventado por outras vozes, corpos e afetos.

A potência de Carranca está na recusa às categorias que definem e hierarquizam. Urias faz do seu canto um modo de existir e insistir em novas histórias. Carranca abre fendas no projeto de nação que conhecemos para que, por elas, possam passar outras narrativas, corpos e futuros. Carranca é, nesse sentido, uma fabulação e uma vingança que muda o ponto de vista da “História” e refaz o Brasil pelo ‘avesso’. O disco é feliz ao não oferecer uma resposta estática, mas uma imagem movente de Brasil (im)possível que emerge quando as vozes que foram abafadas começam a escrever, cantar e estar, enfim, “nos livros de história”.

Referências

HARTMAN, Saidiya. Venus in Two Acts. Small Axe, v. 12, n. 2, p. 1–14, jun. 2008.

MANNA, Nuno; GOMES, Itania Maria Mota; VILAS BÔAS, Valéria; FERREIRA, Thiago. Os excluídos do arquivo: fabulação e potências de fabricação da vida. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 21, n. 62, p. 487-509, set./dez. 2024. DOI: 10.18568/cmc.v21i62.3009.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política / Living Commons, 2019