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Foto: Divulgação GNT/Globosat

Expor pontos de vista femininos sobre os assuntos que estão na ordem do dia. O programa Saia Justa, exibido semanalmente às 21h30 no canal GNT, mantém este propósito desde a sua estreia, em 17 de abril de 2002, até os dias de hoje. Porém, tal objetivo adquiriu diferentes significados ao longo desses quinze anos, em que diversas personalidades passaram pela atração, o que a torna um lugar produtivo para a observação dos tensionamentos e disputas em torno das feminilidades na sociedade brasileira. Nesta breve análise, me proponho a olhar para sua configuração atual em diálogo com aquela do momento de estreia do programa.

Inserido na grade de um canal até então prestigiado por suas produções jornalísticas e documentais, o Saia Justa surge em 2002 perpassado por algumas ambiguidades. Com longa experiência na produção do Manhattan Connection, um programa de debate de enfoque jornalístico – formato mais comum no período –, tido pelos críticos como a mesa redonda mais tradicional da TV paga brasileira, o GNT apostou em uma associação entre mulheres e entretenimento, diversão, espontaneidade, intimidade e informalidade, ao definir o Saia Justa como programa de debate feminino. Estas características eram reforçadas inclusive pelo cenário da sala de estar, cuidadosamente composto.

Por outro lado, se a princípio a tônica do programa era uma conversa bem humorada entre Rita Lee, Fernanda Young, Marisa Orth e Mônica Waldvogel sobre temas presentes no noticiário nacional e internacional e assuntos da vida cotidiana e íntima, havia uma clara separação entre a última apresentadora, que também era mediadora, e suas três colegas. Com uma reconhecida trajetória nas editorias mais prestigiadas do campo do jornalismo, Waldvogel representava uma fala autorizada sobre os tópicos abordados. Operando a partir de uma dualidade entre razão e emoção, em que uma conversa entre mulheres era vista como uma atividade emotiva que demandava ordenação, no programa, cabia à jornalista organizar o debate. Além disso, havia também uma separação entre os fatos atuais, comentados no primeiro bloco, e as pautas de comportamento, que ocupavam o segundo e o terceiro blocos da produção.

Ao mesmo tempo em que recorreu a alguns estereótipos de gênero para caracterizar o programa, em seu momento inaugural, o Saia Justa queria se endereçar a uma “mulher contemporânea”, perfil que também se mostrava ambíguo. No programa e em depoimentos da equipe veiculados em matérias jornalísticas, havia uma valorização da dedicação à carreira profissional, a reafirmação de uma bandeira feminista como o direito ao orgasmo, a crítica a alguns comportamentos machistas e uma ampliação, em alguma medida, do que era considerado próprio das mulheres, pois as apresentadoras xingavam, falavam de futebol, política e escatologia. Mas, por outro lado, o programa se reportava a um feminino fortemente vinculado à heterossexualidade, ao consumo, à vaidade, à preocupação com a aparência, no qual as mulheres são muito emotivas e a esfera doméstica é entendida como atribuição feminina.

Nos dois primeiros anos do programa, para defender que mulheres poderiam falar sobre qualquer assunto, foi necessário enfatizar o caráter bem humorado e irreverente do debate e ao mesmo tempo demarcar que Waldvogel estava ali para contextualizar os fatos. Hoje o Saia Justa se posiciona como uma atração que oferece informação e entretenimento, mantendo a atualidade como um critério de escolha das pautas – a partir do que está em evidência não somente no noticiário, como também nas redes sociais – e se ocupando principalmente de discutir as questões comportamentais e as relações de gênero. Astrid Fontenelle, que desde 2013 faz a mediação do programa, se relacionando com o público e com as colegas de modo mais descontraído e jovial, Mônica Martelli e as novatas Taís Araújo e Pitty lidam com as temáticas de maneira séria e engajada em um debate mais horizontalizado.

Desde que optou por oferecer uma “programação com alma feminina” em setembro de 2003 e se tornar “um canal de entretenimento para a mulher brasileira”, conforme descrição presente no site da Globosat, o GNT tem se reinventado constantemente buscando contemplar os mais variados públicos femininos. Ao longo desse percurso, o Saia Justa se consolidou como um carro-chefe da emissora, lugar que pertencia ao Manhattan Connection na época de sua estreia. Junto com o Superbonita, apresentado por Karol Conka desde março deste ano, em sua atual formação, o programa tem um papel crucial na materialização do que o canal expõe como uma conquista de 2017 em sua página no Facebook: “o GNT busca o respeito à voz das mulheres e a valorização da diversidade”.

Não por acaso, Taís Araújo foi a primeira convidada de Karol Conka em um Superbonita que afirma a beleza negra, problematiza o racismo e promove um discurso de aceitação do que foge aos padrões. Atriz com uma carreira consolidada na TV, bastante atuante no que diz respeito ao protagonismo de mulheres negras em diversas produções e reconhecida pela postura politizada que lhe rendeu o título de defensora dos direitos das mulheres negras da ONU Mulheres Brasil, Taís Araújo já mostrou desde o primeiro programa que iria pautar as questões raciais. Ao debater sobre o meme com personagens históricas que fez sucesso na internet no dia internacional da mulher, ela afirmou não se enxergar em nenhuma das mulheres retratadas e mencionou Dandara e Xica de Silva como suas referências. A invisibilidade dos feitos de mulheres negras na nossa história voltou a ser discutida na edição de 1º de novembro, a partir do livro “Heroínas negras brasileiras”, de Jarid Arraes. Para além das interseções entre gênero e raça, também estiveram em discussão nos programas dos dias 19/04, 05/07, 02/08, 16/08 e 04/10 temas como racismo institucional, intolerância, violência, genocídio, representatividade, identidade negra e diáspora.

A vinheta de abertura do programa também traz pistas sobre como ele surge e como se posiciona na atualidade. Se em 2002, ela se encerra com as silhuetas das caricaturas das apresentadoras sendo “espremidas” pelo nome do programa, em 2017, as apresentadoras usam vestidos que se conectam, transformando-se em uma grande saia que se expande ao ponto de não enxergarmos na tela onde ela termina. Em 2017, há ainda um cenário mais clean, no qual a sala de estar já não é reproduzida de modo tão fidedigno.

No primeiro programa desta temporada, Astrid e Mônica ressignificam o clichê de que as mulheres falam demais afirmando que elas falam mesmo e vão continuar falando porque as mulheres são constantemente silenciadas. Nesse sentido, uma boa dose de contextualização histórica na edição de 31 de maio foi uma ótima estratégia para problematizar o estereótipo de que a mulher não sabe lidar com dinheiro. O programa discutiu como, a despeito de uma cultura que não incentivava a mulher a se informar sobre cuidados com as finanças e de questões jurídicas, como a impossibilidade de uma mulher casada ter seu próprio CPF até 1962, as mulheres hoje comandam sozinhas quase a metade dos lares brasileiros e têm a palavra final sobre como gerir o dinheiro mesmo quando a renda é da família. Mônica ilustrou como uma cultura machista pode se sobrepor às leis ao contar a história de sua mãe, que só conseguiu fazer seu CPF quando se divorciou porque colocar o seu direito em prática era considerado uma afronta para o marido dela.

Embora o confronto de ideias e de gerações seja uma proposta do Saia Justa desde o seu momento inaugural, ele surge com mais força agora, em comparação ao período de estreia, no qual Rita Lee por vezes aparecia como um contraponto, mas falava muito menos do que suas companheiras. Atualmente, isso se expressa, por exemplo, quando os padrões de beleza estão em discussão. No dia 2 de agosto, em uma discussão sobre a realização de cirurgias estéticas na vulva, por um lado, houve a exibição de um VT com uma dermatologista expondo vários pontos positivos desse tipo de intervenção, Astrid se colocou “super a favor” de deixar a vulva “mais jovenzinha”, se posicionando como uma mulher de 56 anos, e Taís entendeu que esse tipo de embelezamento poderia favorecer o autoconhecimento entre as mulheres. Por outro, Mônica e Pitty se mostraram preocupadas com mais um modelo exigido às mulheres e chamaram a atenção para a sutileza de perceber onde termina a nossa liberdade e começa um padrão de beleza que está sendo imposto.

Por sua vez, o debate sobre casamento e relacionamento com os filhos trouxe à tona divergências em que o aspecto geracional se sobressai. Em uma conversa sobre divisão do cuidado com os filhos no dia 11/10, Pitty e Taís afirmaram que já fazem isso com seus maridos e que acreditam numa mudança de valores que envolve, por exemplo, demandar a instalação de fraldários em banheiros masculinos. Mônica e Astrid demonstraram certa perplexidade diante de tais depoimentos e reagiram enfatizando que esse comportamento não é o padrão, que esse é o homem que a gente ainda vislumbra e sonha e que tudo depende da mulher estar preparada para deixar o homem fazer as tarefas. Com esse embate de ideias, ganham as apresentadoras mais velhas, que podem ser convencidas de que outro futuro é possível; ganham as mais novas, que entendem quais dificuldades as mulheres que as antecedem tiveram que passar para que elas possam experimentar novas possibilidades hoje e ganhamos nós, que podemos construir nossos próprios pontos de vista a partir dessas distintas experiências de vida.