“Pobre de quem não sabe voar”: disputas do consumo de telenovelas no entorno tecnocomunicativo brasileiro
O consumo televisivo no cenário conformado por um entorno tecnocomunicativo (Martín-Barbero, 2009) se dá por fluxos audiovisuais (Ferreira, 2021) em rede (Gutmann, 2021; Gomes, 2023) e é marcado pelas disputas entre apoiadores e críticos (ou como é comumente chamado entre fãs e haters). O título desse texto inclusive faz referência a um desses embates. Durante a exibição da novela Salve Jorge, a autora Glória Perez escreveu em seu twitter – “Pobre de quem não sabe voar” – em resposta às críticas sobre algumas incoerências da trama. A busca por verossimilhança caracteriza um dos modos como assistimos às telenovelas, principal produto audiovisual do país; nós, noveleiros, costumamos buscar nelas alguma coerência com a vida fora das telas, ainda que a nossa dramaturgia esteja repleta de situações fantásticas, como uma mulher que explode, um homem que precisa ser amarrado para não ser atraído pela lua e um homem que fez um pacto com o diabo e guarda um cramulhão numa garrafa.
Porém, retomo esse vaticínio de Glória para abordar como a novela Vale Tudo vem sendo recebida nesse novo cenário comunicacional, em que a extrapolação do consumo televisivo para além da grade se adensa nesse consumo em rede. Ainda há aqueles que a assistem na hora que a telenovela das 21 (quase sempre começando às 21h19) é exibida, respeitando a organização por grade, porém os dados do consumo no streaming oficial da Rede Globo, o GloboPlay, demonstra não ser desprezível a audiência que acompanha por lá os desenlaces em torno de Raquel, Maria de Fátima e Odete Roitman, as três principais personagens. Mesmo aqueles que assistem acompanhando a telenovela durante sua exibição na TV Globo não consomem comentando apenas com as pessoas que estão nos mesmos ambientes que elas. O Twitter (atual X), o TikTok e outras plataformas digitais se tornaram espaços fundamentais onde o consumo televisivo e essas partilhas e comentários se dão.

Logo de Vale Tudo (Créditos: Rede Globo/Divulgação)
E é aí que os principais embates entre apoiadores e críticos da novela se apresentam. Entre esses últimos, há aqueles que viram a novela original exibida em 1988, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, e passam todo o tempo comparando a nova versão com a original. Algo que tem marcado essa nova exibição de Vale Tudo são cortes que mostram como as cenas se desenrolaram na original e agora. Algo que já havia acontecido na exibição dos remakes de Pantanal e Renascer e volta a se repetir mais intensamente com a adaptação escrita por Manuela Dias e equipe. De um modo geral, os críticos recorrem reiteradamente ao argumento de que a versão original era melhor, que Manuela Dias esvaziou o caráter político da novela, que o texto é pobre e que os arcos dramáticos são resolvidos com muita rapidez. Esses, envoltos por um modo de ver essa telenovela caracterizado pela nostalgia da original, não têm conseguido voar e embarcar em como a nova trama se apresenta. O antigo Canal Viva, atual GloboPlay Novelas cumpre um papel nesse sentido, ao disponibilizar versões na íntegra de telenovelas, como Vale Tudo, facilita esse consumo que volta os olhos para o passado para efeitos de comparação.
Os defensores de Manuela Dias, por sua vez, publicam nessas mesmas plataformas vídeos emocionados vendo a novela, fotos de pessoas assistindo em suas casas e demarcam os índices de audiência que a novela tem alcançado, superiores à Mania de Você, novela anterior, e em algumas cidades, já alcançando os maiores índices da década. Sem contar o sucesso publicitário, algo sempre demarcado pela própria TV Globo. Lembram ainda a trajetória da autora, responsável pela série Justiça e pela novela Amor de Mãe, dois sucessos da emissora.
O que vemos é que muitas das escolhas da nova equipe de redatoras e redatores dialogam com esse momento comunicacional em que os fluxos audiovisuais são atravessados por múltiplas temporalidades. Martín-Barbero (2009) afirma que vivemos em um momento de compressão de espaços e tempos em que as coisas se desenrolam com muito mais rapidez. Não à toa vídeos curtos de Tiktok e outras plataformas são tão consumidos. Em minha tese (Ferreira, 2021), afirmei na análise de fluxos audiovisuais em torno das Jornadas de Junho de 2013 que os virais eram uma das formas culturais que caracterizam nossa presença no entorno tecnocomunicativo no Brasil. Os críticos acusam Manuela Dias de escrever para que haja cortes da novela nas redes. Ainda que cenas longas ainda estejam presentes – afinal estamos falando de uma obra que dialoga com múltiplas temporalidades e expectativas de públicos que consomem televisão de modos distintos – não tenho dúvida que a resolução rápida de arcos narrativos e a abordagem de temas que viralizaram como os bebês reborn falam desse entorno tecnocomunicativo onde há uma prevalência de viralização de vídeos curtos. Não é à toa também que a Maria de Fátima de hoje, interpretada por Bella Campos, quer ser influencer, tem um perfil no Instagram e é acompanhada por seus fatymores, acionando um conjunto de repertórios comunicacionais desses modos de fazer e ver televisão em rede.
E é justamente por estar nesse entorno tecnocomunicativo, caracterizado por um fluxo audiovisual em rede, que o consumo de Vale Tudo é marcado também de forma mais visível por críticas oriundas de reivindicações de movimentos sociais como os movimentos negros. Manuela Dias escolheu caracterizar a nova versão de Raquel como uma mulher negra, decisão celebrada por muitas pessoas, seja pela trajetória da atriz Taís Araújo, escalada para interpretá-la, seja por reconhecer que aquela mulher que batalha e ascende socialmente através do seu trabalho se alia às histórias de outras tantas mulheres negras. E é esse embate racial que fez emergir uma das mais recentes ondas de críticas sobre a telenovela. Numa escolha de reviravolta que não estava presente na versão original, a autora e sua equipe decidiram que Raquel sofreria um golpe de Odete Roitman, interpretada por Débora Bloch, e voltaria a vender sanduíche na praia. Muitos criticaram e a própria Taís Araújo se posicionou dizendo à revista Quem que também tinha a expectativa de ver essa Raquel poderosa que apareceu na versão original: “Também tinha a esperança disso e gostaria muito de vê-la assim. Como mulher negra, como artista negra, de ver uma outra narrativa sobre mulheres negras”.
Ou seja, além da nostalgia dos fãs mais ferrenhos da versão original, há os críticos que se posicionam em defesa das expectativas que foram criadas pelas escolhas do remake, num diálogo com lutas que, há décadas, reivindicam outras histórias e modos de mostrar as vidas de pessoas negras na nossa teledramaturgia. Sim, há que se ter espaço para denúncia, mas sem deixar de imaginar onde podemos estar e já estamos na sociedade brasileira. Taís Araújo, inclusive, diz isso na entrevista que citei acima. Nesse caso, a autora e a equipe deixaram de dialogar com essa compreensão de que não se trata apenas sobre imaginação de futuro, o que eventualmente poderia romper com algum pacto de verossimilhança – mesmo que tenhamos, como disse, uma dramaturgia marcada pelo fantástico e pela fabulação -, mas sobre onde nós, pessoas negras, estamos nesse momento da vida do país; e de acolher a reivindicação por outras narrativas que permitam imaginar e estabelecer outras relações sociais num país ainda tão marcado pelo racismo.
O que vemos, portanto, nessas disputas em torno de Vale Tudo são diferentes temporalidades de modos de fazer e ver televisão coexistindo no entorno tecnocomunicativo. Seja por nostalgia, seja pelo acesso à íntegra da primeira versão – com reacts em plataformas, como o insert acima -, seja pelo apoio às mudanças como em torno de Maria de Fátima e uma Raquel negras, que explicitam também a presença mais visível de reivindicações políticas como a dos movimentos negros. Ver e fazer televisão é algo que conforma a cultura no Brasil e hoje demanda observar que há uma audiência envolvida por e que constrói fluxos audiovisuais em rede. Compreender essas práticas é fundamental para qualquer pessoa que queira voar a partir da nossa dramaturgia.
Referências
Ferreira, Thiago. Transformações de políticas e afetos no Brasil: contextualizando radicalmente junho de 2013 em fluxos audiovisuais. Belo Horizonte: Fafich/Selo PPGCOM/UFMG, 2021.
Gomes, Itania. CONSCIÊNCIA AFETIVA, MODIFICAÇÕES DE PRESENÇA E FLUXO: COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA NOS ESTUDOS CULTURAIS. In: Leal, Bruno; Mendonça, Carlos (Orgs.). TEORIAS DA COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA: APROXIMAÇÕES. Cachoeirinha: Editora Fi, 2023.
Gutmann, Juliana. Audiovisual em rede: derivas conceituais. Belo Horizonte: Fafich/Selo PPGCOM/UFMG, 2021.
Martín-Barbero, Jésus. As formas mestiças da mídia. Entrevista à revista Fapesp. Revista Fapesp, 163 ed. . set. 2009. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2009/09/01/as-formas-mesticas-da-midia/