A Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, para além das consequências biológicas sobre os nossos corpos, tem agido sobre os nossos cotidianos. Em diversos países, medidas de distanciamento e isolamento sociais têm sido adotadas para diminuir a circulação do vírus e evitar o colapso dos diferentes sistemas de saúde. As aglomerações estão sendo evitadas, com implicações também nos modos de produção cultural.
A TV Globo, maior emissora de televisão do Brasil, teve que mexer na sua programação. Repórteres mais idosos tiveram que seguir a recomendação de trabalhar de suas residências. Foram aplicados rodízios de profissionais, com jornalistas se revezando para levar os telejornais ao ar. E as telenovelas, principais produtos de ficção da emissora, tiveram que ser suspensas, sendo divididas em temporadas (saudades, Lurdes!), ou ter suas estreias adiadas, a fim de evitar expor atrizes, atores e outros membros da produção ao risco de contaminação.
A necessidade de isolamento social faz, portanto, com que jornadas de trabalho e o modo como estamos nos relacionando com o tempo se alterem. Há os que ainda precisam trabalhar, seja porque estão empregados em serviços essenciais como supermercados, farmácias e hospitais; serviços de limpeza, ou não foram liberados por seus empregadores. E há aqueles que estão em suas casas, trabalhando a partir delas, em um modo de produção desregulado, em que as horas de serviço se confundem. Há ainda aqueles que precisam se isolar em casas de um cômodo, aqueles que fazem a quarentena em suntuosas mansões e os que não têm onde morar – pessoas em situação de rua, sem-tetos, entre outros. Dimensões de um país tão desigual quanto o nosso.
As implicações da pandemia são vistas em detalhes pequenos do cotidiano. Que roupa vestimos: trabalhamos de pijama ou colocamos outra para começar a hora de serviço? Que horas podemos nos desconectar? Em que momento fazemos as nossas refeições? Em que dia efetivamente estou: 07 de abril – dia que comecei a escrever esse texto – ou o 25º dia de quarentena? Quando poderei rever, beijar e abraçar meus amigos e familiares?
Conforme Martín-Barbero, a televisão na América Latina é constituidora das nossas culturas, sendo também constituída por ela. Há mediações que se estabelecem, segundo esse autor, entre os meios de produção e a recepção. Uma dessas mediações é a temporalidade social. Martín-Barbero (2008) diz que a temporalidade social refere-se à organização temporal da TV, reproduzindo um tempo cotidiano, “um tempo repetitivo que começa e acaba para recomeçar, um tempo feito não de unidades contáveis, e sim de fragmentos” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 295).
A partir do momento que o tempo da modernidade é suspenso frente a uma doença que coloca a ideia de futuro em questão – já que, apesar do alerta de haver grupos de risco, há vítimas de diferentes faixas etárias e grupos sociais – também a organização temporal da TV se coloca na relação com essas alterações. A Covid-19 fez com que os circuit-breaker fossem acionados nas bolsas de mercado, sendo a pandemia uma espécie de circuit-breaker do modo de produção capitalista, fazendo com que todos os países, incluindo as grandes potências econômicas, tenham que parar por um tempo.
Se o tempo da modernidade repete a lógica produtiva do capitalismo, e nós dividimos os nossos tempos em tempos de trabalho e lazer e jornadas semanais de trabalho que costumam variar, no Brasil, de 40 a 44 horas, que efeitos temporais podemos ver na TV Globo, maior emissora de TV e escolhida aqui como metonímia de alterações que se dão em outras emissoras? Também ela se articula aos atordoamentos que estamos encarando culturalmente.
Sua programação abre espaço para programas especiais sobre o novo coronavírus, com boletins durante a grade; com a inclusão de uma atração exclusivamente voltada para a doença e a extensão da exibição diária de telejornais, com diversas reportagens sobre o assunto e a inclusão diária dos boletins do Ministério da Saúde sobre o tema, além das orientações de médicos e autoridades como governadores e a Organização Mundial de Saúde. O telejornalismo e o jornalismo têm afirmado o discurso da importância de tratar com informação (e uma suposta verdade factual) a pandemia perante a circulação de informações falsas utilizadas como instrumento por agrupamentos políticos. Aí ganham mais espaço e força o lugar do discurso das fontes autorizadas, como as citadas, e do próprio jornalismo.
O telejornalismo da TV Globo investe na construção temporal de um aqui-agora delimitado pela pandemia. As entradas ao vivo com repórteres atualizando as informações sobre a Covid-19 estão mais frequentes. Há a presença frequente dos relatos de pessoas que superaram a doença, parentes de pessoas que foram infectadas e estão internadas em hospitais ou aqueles que acabaram morrendo. São estabelecidas ainda partilhas a partir de diferentes países. Acompanhamos o avanço da doença, da China aos Estados Unidos, passando pela Europa. Os telejornais operam uma convocação permanente de um tempo da pandemia, através das partilhas desses relatos.
As telenovelas exibidas em outros anos reforçam nossa confusão temporal. Em que momento estamos exatamente? No momento em que comecei a escrever esse texto passava na TV Globo a novela Totalmente Demais, exibida entre novembro de 2015 e maio de 2016. Estamos quatro anos depois vendo voltar narrativas, sem que elas estejam no Vale a Pena Ver de Novo ou no Canal Viva, que são os espaços em que estamos acostumados a ver esses exercícios temporais. As telenovelas já exibidas passam a ocupar as faixas do horário nobre da grade da Globo, uma marcação fundamental para o funcionamento da emissora, que vem sendo aprimorada por ela desde a década de 1970.
Há uma abertura sobre o futuro – não sabemos exatamente quando poderemos sair do isolamento social, tampouco como teremos que lidar com os controles biopolíticos sobre nossos corpos; nem com as transformações impostas pelo homem ao planeta e vice-versa – e uma retomada de um passado trazido de volta para ocupar o espaço deixado por uma imposição da pandemia. Atravessamos tempos pandêmicos em que há uma espécie de colisão entre o mundo que tínhamos ao entrar em isolamento, o presente que efetivamente vivemos durante a pandemia e o mundo que encontraremos – e construiremos – ao atravessarmos esse período. Ele está sendo constituído e disputado desde agora.
Referência
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, Cultura e Hegemonia, 4ª, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.