Quem somos Nós?
Essa crítica contém spoilers do filme, se ainda não o assistiu, leia por sua conta e risco.
“Nós” é o segundo filme dirigido e escrito pelo ator e comediante estadunidense Jordan Peele. Conhecido pelo seu trabalho humorístico, ele fez sucesso com seu programa Key & Peele do canal Comedy Central, que trazia esquetes com temas sobre o racismo e o machismo, por exemplo. Desde aqui, seu flerte com o gênero terror já se apresentava, mas foi em 2017, com o lançamento de Corra (no original, Get Out), seu filme de estreia, que sua fama ganha proporções que provavelmente ele jamais imaginara.
Ao contar uma história de terror em que um homem negro vai conhecer a família branca de sua namorada e termina descobrindo um esquema perverso de tomada de corpos, Peele estabeleceu um alto padrão para suas próximas produções devido ao sucesso comercial do filme e que inclusive lhe rendeu um Oscar de melhor roteiro original. Menos de dois anos depois, Peele lança seu segundo projeto de terror nos cinemas. O filme traz diversas abordagens ousadas, e as avaliações da crítica especializada o consideram um filme que nunca teria sido uma obra de estreia. Vamos entender o porquê!
“Nós” teve a maior bilheteria de um filme de terror original no primeiro final de semana. (Crédito: Reprodução Universal Pictures)
Nós (no original US que remete também à sigla de United States) é uma crítica à sociedade estadunidense. A sua narrativa constrói um filme difícil de digerir, pois ela não te oferece respostas concretas, nem está interessada em explicar toda a criação de seu universo. Isso pode gerar desconforto em parte da audiência – que inclusive levantou antes dos créditos subirem na sessão em que assistimos – mas é um sinal da ousadia de Peele. Se em seu filme de estreia, ele amarra toda a trama de uma forma que o racismo é o grande terror da história, em Nós, o terror somos nós mesmos. Difícil né? Pois é, mas vamos lá.
A história se passa nos Estados Unidos, onde uma família negra composta por Adelaide Wilson (mãe), Gabe Wilson (pai), Zora e Jason (filhos) vão passar um feriado na casa de praia da família. No final daquele dia, quatro estranhos vestindo macacões vermelhos aparecem na entrada da casa e começam uma invasão domiciliar, com uma grande surpresa: os quatro estranhos, na verdade, eram eles mesmos. Ao que Zora pergunta “quem são eles?” e Jason responde “eles são nós”. A família estava sendo atacada pelo que pareciam ser clones que mal sabiam se comunicar de forma inteligível.
Ao perceber a intenção violenta desses outros, a família começa uma jornada para tentar se salvar dos ataques. Mais tarde, descobrimos que isso estava acontecendo de uma forma geral (pelo menos nos EUA), onde todo mundo tinha sido atacado por cópias de si, vestidas de vermelho. Essa revelação é feita quando seus amigos, membros de uma família branca, são brutalmente assassinados por suas projeções.
A história imagina um mundo paralelo inferior ao nosso, onde cópias nossas realizam exatamente as mesmas coisas que nós, mas de forma marginalizada, sem conforto ou privilégios. Peele faz uma crítica direta e certeira ao mundo da exclusão. Red, a personagem clone de Adelaide e a única que consegue desenvolvimento intelectual entre os excluídos, ao ser confrontada com a pergunta “quem são vocês?”, responde prontamente: “nós somos americanos”. Por mais canhestra que a cena possa parecer no primeiro momento, a sua construção permite que Peele diga que aqueles seres inferiores são humanos como nós, e que somos nós que trazemos mazelas a sociedade, somos nós que excluímos, somos nós que matamos, somos nós que dizemos que o outro não deve existir, somos nós que classificamos as pessoas, somos nós que construímos muros, somos nós que votamos em Trump (ou Bolsonaro). Difícil? Pois é.
Desde o seu primeiro filme, o diretor trabalha bastante com simbolismos, que nem sempre são percebidos pela audiência, mas trazem um significado que complementa a mensagem da trama. Em “Nós”, eles são muitos, desde a relação com o apocalipse religioso (veja o significado de Jeremias 11:11[1]), até as questões de identidade, o ponto alto do filme. Outros elementos recorrentes como a tesoura – que possui dois lados opostos que se juntam – representam a dualidade enquanto uma perigosa arma; já os coelhos são uma referência a Alice no País das Maravilhas, sua presença em tela tensiona para o telespectador as noções de realidade e ilusão.
(Crédito: Reprodução Universal Pictures)
O diretor disse que a ideia do filme surgiu quando ele se perguntou: “por que as pessoas sempre acham que o outro é o vilão, e se o vilão fôssemos nós?”. Ele constrói o clima de tensão do filme a partir do suspense de não sabermos exatamente o que aquilo tudo significa, as questões durante a trama são muitas: “por que são iguais? De onde eles vêm? Por que são violentos?”. E a tensão de saber que um possível lado ruim de nós mesmos um dia pode vir à tona é aterrorizante.
O filme ainda constrói questões que nos colocam em reflexão sobre a relação do racismo e as formas do capitalismo. Seus amigos da família branca evidentemente são muito mais ricos, pois possuem uma melhor casa, carro, iate e equipamentos tecnológicos em comparação aos protagonistas. Gabe se projeta nas conquistas materiais de seu amigo Josh Tyler, até porque, por mais trabalho e dinheiro que ele consiga, sua posição sempre se encontrará a um passo atrás de seu parceiro.
A crítica às diferenças de oportunidades entre brancos e negros em nossa sociedade é pulsante, mas ela vai além. Apesar de uma posição social mais confortável, a família branca estava cindida por problemas de relacionamento. A falta de afetuosidade entre eles é demonstrada em diversos momentos e, talvez, por isso, eles tenham sido vítimas fáceis de seus clones. Ensimesmados em seus próprios universos particulares, a falta de partilha de uma vida em comum os impossibilitaram de reagir contra uma ofensiva inesperada, vinda de seus próprios reflexos. Por outro lado, a família Wilson utilizou a união e a tática como estratégias de sobrevivência contra a ofensiva. Todos esses aspectos revelam que a verdadeira vitória em uma sociedade estruturada pela diferença não está na individualidade, mas sim na força que a união pode provocar.
Cada vez que uma cópia eliminava o seu eu, de forma orientada, elas se juntavam de mãos dadas em um cordão humano que parecia dividir o mundo em dois, de forma intransponível. Essa construção narrativa é certamente uma crítica ao muro prometido pelo presidente Donald Trump para separar Estados Unidos e México. O muro de concreto aqui foi substituído por um muro humano dos autodenominados americanos, assim o diretor chama à responsabilidade pela concretização do projeto a todos os estadunidenses. O mundo está se dividindo não por forças externas, mas por atitudes de nós mesmos, que representa uma versão que mal conhecemos, mas habita o submundo de nossas próprias emoções.
Ao final do filme, Peele toma uma decisão vista por alguns como um movimento fácil de plot twist (reviravolta) para causar estranhamento à história, e mais uma vez parece algo fora do lugar, desencaixado. Fica implícito na história que na verdade Red era a pessoa original que foi trocada na infância pela sua cópia, e quem havia crescido no nosso mundo, no final das contas, foi a cópia. Num primeiro momento isso nos parece muito estranho, porque criaria alguns furos no roteiro. Mas, a mensagem de Peele e o simbolismo da cena dizem muito sobre a nossa relação com o outro. O que o diretor nos diz nesse momento é que aquela cópia que vivia no mundo inferior, ao vir para o nosso mundo conseguiu se desenvolver, casar, ter filhos e amar. As cópias eram iguais a nós, só não viviam com as mesmas oportunidades. A crítica a quem acha que se dando as mãos salvaremos o mundo também é ferrenha, não adianta querer salvar o mundo, se não cuidamos de nós mesmos, se não conseguimos enxergar quem está ao nosso lado.
[1] Leia: https://cinestera.com.br/nos-o-que-e-jeremias-1111-no-filme-de-jordan-peele/.