Depois de 5 meses do lançamento do primeiro programa apresentado por drag queens na televisão brasileira, no dia 1º de maio de 2018, estreou no Multishow (Globosat) Prazer, Pabllo Vittar, uma série de quatro episódios que vai ao ar até o fim do mês. A cantora, que tornou-se um dos maiores fenômenos recentes do pop brasileiro, apresenta uma espécie de talk show musical, com conversas sobre autoafirmação e histórias cotidianas de pessoas que enfrentam preconceitos em relação a suas identidades de gênero.
Pabllo Vittar, maranhense de 23 anos, chegou a ser considerada pela imprensa como ‘dona’ de um fenômeno atualíssimo: uma reportagem do G1 com o título “Efeito Pabllo Vittar” elencou uma série de artistas drag queens, transexuais e travestis como apostas para 2018. Integrantes de uma onda de glitter, seriam elas, segundo a reportagem, peças de uma “revolução” para os mercados da música e do entretenimento, por conta da ascensão da artista drag queen Pabllo Vittar como um “estouro”, um “nome nacional”.
Apesar do perceptível sucesso que a levou para o Multishow e a ideia de um efeito “revolucionário” a partir de Pabllo Vittar, o ar de novidade que o fenômeno de artistas drags ganhou na reportagem nos causa um certo incômodo. Ela reforça apenas a rentabilidade, ao tratar de acordos assinados, promessas para gravadoras e empresas em propaganda, quantidades de views no Youtube. A afirmação de suas feminilidades aparece quase como uma marca e muito menos como uma disputa em um contexto musical marcadamente heteronormativo.
Sem subestimar as inúmeras formas como o capitalismo se apropria das diferenças, fazemos um esforço aqui em convocar alguns desses contextos de disputa minimizados pelas lógicas midiáticas, incluindo os questionamentos acerca da qualidade musical dessas artistas, considerando os fenômenos pop em sua historicidade. Esse percurso passa pela relativização do tom de ineditismo e pelo reconhecimento de que não são novidade no Brasil nem as performances artísticas que encenam feminilidades em corpos que não pertencem a mulheres cisgênero, nem a tentativa de regular o consumo musical, tornando abjetas expressividades artísticas que não seguem determinadas normas culturais.
Desponta como um exemplo da marginalização a qual eram submetidos os corpos que desafiavam binarismos nos palcos a lendária figura de Madame Satã, que se apresentava em boates da Lapa na década de 30. Na busca de um contexto ainda mais próximo, o documentário Divinas Divas, da atriz Leandra Leal, lançado em 2017 com apoio do Canal Brasil, evidencia diversas temporalidades que conformam o fenômeno de artistas drags como Pabllo Vittar. O filme conta a ascensão de Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Eloína dos Leopardos, Camille K, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigitte de Búzios, artistas travestis que surgiram durante os anos 60 e ganharam destaque nos espetáculos realizados no Teatro Rival, no centro do Rio de Janeiro. Nas histórias contadas por cada uma delas, e também nos relatos de produtores e amigos, vemos como, ao expressarem suas identidades de gênero, elas desafiaram lógicas normativas, utilizando seus corpos como enfrentamento às diferentes formas de cerceamento do seu tempo.
Na década de 60, em plena ditadura militar, período em que essas artistas começaram a fazer sucesso nos teatros e boates gays do centro do Rio, as travestis não podiam circular nas ruas porque eram perseguidas pela polícia. Elas também eram impedidas de conceder entrevistas na divulgação dos shows que aconteciam no Teatro Rival, importante espaço cultural da época. Era um contexto de muita opressão, em um momento em que a homossexualidade ainda era oficialmente considerada uma doença no Brasil. No filme de Leandra Leal, Marquesa e Brigitte de Búzios contam como foram submetidas a “tratamentos” em um sanatório, e mostram como o discurso higienizador da modernidade definia a inteligibilidade dos seus corpos. Se a primeira delas optou por se montar apenas nos shows para não afrontar a família, a segunda manteve a identidade feminina, mas deixou de se expressar livremente em todos os lugares: “aprendi a baixar o tom e concordar com a sociedade. A gente não pode ser contra a sociedade senão a gente vira o quê? Um animal em extinção”.
Artistas retratadas no documentário Divinas Divas/ Fonte: Divinas Divas
Estas artistas não ostentavam abertamente um discurso crítico em relação ao regime repressor, e preferiam buscar o glamour e o sucesso a partir do consumo de elite em teatros do Rio de Janeiro, principal centro cultural da época. Entretanto, para elas, existirem como travesti e se expressarem artisticamente naquele momento histórico – quando a prostituição, na maioria das vezes, aparecia como única perspectiva –, era um ato político de enfrentamento aos valores comportamentais conservadores, apropriando-se de ferramentas artísticas para firmar suas existências e afirmar publicamente suas percepções de identidades de gênero.
Espaços como o Teatro Rival não representavam, para as personagens retratadas no filme, somente um palco importante para as suas carreiras artísticas, mas também um lugar central de sociabilidade, onde parte delas encontrou seus grandes amores e onde era possível serem elas mesmas. No contexto dessas artistas, o espaço possível para elas era o teatro, concebido por Soliva como um cenário possível para “produção de uma percepção pública sobre sexualidades não normativas no Brasil”[1]. Tendo como matrizes as vedetes brasileiras, as divas do cinema e da música, como Marylin Monroe e Maria Callas, e os cabarets franceses, as artistas do Rival mantiveram viva a tradição do Teatro de Revista que, naquele período, já estava em decadência.
As oito artistas travestis do Teatro Rival e Pabllo Vittar se apropriam de feminilidades de formas distintas. A canção escrita por João Roberto Kelly, diretor do primeiro espetáculo com elenco de travestis, Les Girls, dá uma dimensão do que era construir um corpo feminino na década de 60: “ser mulher é muito fácil para quem já é, mas pra quem nasce para ser João é um sacrifício a transformação”. Encontrando dificuldade até mesmo para ter acesso a recursos como uma peruca, que, por vezes, era trazida de outros países, as estrelas do documentário incorporaram uma feminilidade que ultrapassava os palcos e era experimentada cotidianamente. Elas foram pioneiras na constituição de uma identidade coletiva travesti, construída, como ressalta Benedetti [2] , a partir da apropriação de tecnologias médicas – por exemplo, se pensarmos no uso de hormônios em uma época em que a pílula era uma novidade também para as mulheres cisgênero e no implante de silicone, que ainda não era uma intervenção acessível. É importante ressaltar que esses elementos eram considerados importantes para a vivência travesti naquele momento histórico, o que não significa que ser travesti possa ser resumido a ostentar tais características ou que a experiência de ser travesti permaneça nos dias atuais sendo significada da mesma forma.
No contexto atual, em que intervenções cirúrgicas e terapias hormonais são, em certa medida, menos criminalizadas pelo discurso médico e jurídico do que na década de 60, a construção do feminino em Pabllo Vittar se dá, em grande parte, de outro modo: com o uso de roupas, acessórios, maquiagem específicos do universo drag queen, apropriando-se da maior circulação desses produtos internacionais no mercado brasileiro. Percebemos também uma gestualidade e expressão corporal próximas das drag queens estadunidenses, com marcas do exagero e do humor em performances vinculadas à cultura pop. Por outro lado, tanto Pabllo Vittar quanto as artistas retratadas no filme têm em comum o fato de dialogarem com o feminino hegemônico de seus tempos específicos, se constituindo como divas.
Pabllo Vittar, que começou a ganhar notoriedade fazendo versões abrasileiradas de músicas pop internacionais, se inspirando também nas divas dessa indústria musical como Rihanna, Beyoncé, Lana Del Rey, Nick Minaj e Ariana Grande, parece se apropriar de gêneros musicais brasileiros marcadamente populares na intenção de construir uma diva à brasileira. Se Rogéria, artista mais famosa do documentário, se intitulava a travesti da família brasileira, poderíamos dizer que Pabllo seria a drag da família brasileira, presente nos sons dos aniversários de crianças, nos programas de auditório de maior de audiência da televisão, nas latas do refrigerante mais consumido no país. Por sua vez, inspiradas nas vedetes e atrizes da época de ouro do cinema hollywoodiano, mas também nas artistas travestis que se apresentavam no Carrousel de Paris, as divinas divas vistas no documentário abrasileiravam suas performances incorporando modinhas e cenários tropicais.
Se, na década de 60, as oito artistas travestis apresentadas no documentário estavam disputando a existência, uma vez que até os dias de hoje a expectativa de vida das travestis está muito abaixo do restante da sociedade, e tiveram suas carreiras circunscritas a casa de shows específicas, na atualidade, Pabllo Vittar disputa manter-se nos grandes palcos, pulverizando as barreiras que dividem cenas musicais mainstream e das comunidades LGBTQ. Sua curta trajetória como um fenômeno nacional já acumula cifras notáveis: em junho do ano passado, seus seguidores no Instagram triplicaram, atingindo 4,2 milhões ; já estrelou campanhas da Coca Cola, Adidas e Avon; no Spotify, plataforma musical em streaming, foi a primeira artista brasileira a ter três músicas no Top 5 ; e no Youtube, seu último clipe, Corpo Sensual, foi o videoclipe brasileiro recente que atingiu a marca de 1 milhão de visualizações em menor tempo.
O fato é que sua participação cada vez mais presente no cenário midiático tem dado pistas de que a “guetização” de gostos musicais ligados a sexualidades e gêneros não normativos tem, ou talvez sempre tenha tido, fronteiras muito tênues na sua relação com a cultura musical mainstream. Por isso, a ideia de uma cena LGBTQ que potencialmente extrapola os limites imaginários dos seus espaços culturais é importante para pensar o fenômeno atual.
O documentário mostra que as estrelas retratadas têm múltiplas referências do mundo do cinema, do teatro, da comédia e da música, em parte adquiridas pela presença em bastidores, a exemplo de Rogéria e Camille K, que, respectivamente, maquiavam e cuidavam dos cabelos das celebridades, e por suas passagens por cidades como Paris, Berlim e Nova York. Apropriando-se cada uma a seu modo dessas diferentes matrizes, elas montaram espetáculos profissionais de sucesso, como International Set, Les Girls e O Planeta é das Bonecas. Porém, mesmo com todo zelo pela qualidade artística das produções, o reconhecimento do caráter artístico do seu trabalho e a conquista de espaços que não os de sociabilidade gay foi mais restrita. Ainda que muitas delas tenham sido retratadas nos jornais e revistas da época, somente Rogéria obteve mais destaque fora dos palcos dos teatros, tendo participado também de programas de auditório e de telenovelas.
Embora esteja em uma posição muito mais privilegiada na atualidade, Pabllo Vittar também enfrenta resistências e tentativas de deslegitimação de sua carreira como artista. A qualidade vocal da cantora tem sido tema de intensos debates. Estão, por um lado, aqueles que não gostam da cantora e argumentam haver uma perseguição ao gosto e à livre expressão de um “não-gostar”. Por outro lado, há os que entendem o tal efeito Vittar como uma onda pop, em que se embaralham a resistência de uma minoria com as lógicas mercadológicas. Não podemos desconsiderar também que, por vezes, as avaliações de caráter artístico se misturam com o incômodo de parte de parcelas mais conservadoras da sociedade com o fato de uma artista drag, que no seu cotidiano se comporta como um gay afeminado, ter alcançado um sucesso tão grande no país.
Porém, aos haters se contrapõem instâncias de peso, a exemplo da Associação Paulista de Críticos de Arte, que concedeu a Pabllo Vittar em 2017 o prêmio de artista revelação. Para além do reconhecimento de artistas e entidades consagradas, a carreira da artista também se beneficia de um entorno tecnocomunicativo, nos termos de Martín-Barbero [3], em que, por meio de uma apropriação das redes sociais e de plataformas de conteúdo audiovisual, afirmam-se identidades mais plurais e contestam-se binarismos de gênero. Tal contexto possibilita pensar que, na atualidade, por conta de um recrudescimento de valores conservadores, Pabllo Vittar também lide com tentativas de cerceamento, como enfrentaram as Divinas Divas, ainda que as reações sejam diferentes. Se Brigitte de Búzios entendia que precisava se calar para se manter viva, Pabllo Vitar, em entrevista à Trip TV, ao mesmo tempo em que se emociona ao lembrar de uma atitude homofóbica de um colega da escola, rapidamente situa o ocorrido como algo que já foi superado: “Ai xô, sou feliz, sou drag, sou bonita, bebê”.
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[1] SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o símbolo do glamour: Um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (UFRJ). 2016, p. 45
[2] BENEDETTI, Marcos. Toda feita. O corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
[3] LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Uma aventura epistemológica. Entrevista com Jesús Martín-Barbero. Matrizes, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 143-162, 2009.