Movimentos Musicais da Periferia Latinoamericana

(Picó, fotógrafo desconhecido, arquivado por Fabian Altahona)

 

 

Existem na América latina uma série de fenômenos sociais surgidos ao redor da música nas periferias das grandes cidades do continente. Ainda que a população, as referências musicais e desenvolvimento das mesmas seja diferente e nem sempre paralelo, olhando para a história do dancehall, o reggaeton, a champeta e o pagode, são evidentes as semelhanças. Este texto tem como objetivo fazer uma breve resenha da história desses gêneros na américa latina para estabelecer assim um panorama que permita no futuro estabelecer pontes entre essas práticas, as suas lutas e os seus desenvolvimentos no nosso continente.

Dos ritmos mencionados o dancehall é um dos mais antigos e com maior influência. Para entendermos este gênero musical é preciso dar uma olhada para o fenômeno dos sound systems na Jamaica. Sound system é um termo utilizado para falar dos dispositivos de reprodução de som feitos artesanalmente, customizados, móveis e com uma presença protagônica nas festas de rua. Tom the Great Sebastian é considerado o pioneiro desse movimento na ilha na década de 1950. Nesses anos, os gêneros populares eram o ska, rocksteady e posteriormente o reggae, mas com o passar do tempo surgiram novos, como o dub, que mexeu com o reggae através dos dispositivos de reprodução (reverberando, repetindo, etc.). Nesses diálogos e mudanças aparece o dancehall fazendo ainda mais determinante o papel dos aparelhos eletrônicos nos riddims¹.

Da Jamaica a gente vai até Panamá, onde desde o surgimento do reggae se consolidou um grande mercado para a América Latina e os Estados Unidos de Reggae em espanhol ou “plena”. O dancehall da Jamaica virou também reggae em espanhol, e dois riddims desse gênero seriam o começo de um novo estilo de música: o Reggaeton. Os riddims “Hot this year” (1985) e “Dembow” (1990) junto com o trabalho de artistas como El general, Danger Man ou Vico C deram as bases para que da cultura do hip hop e do dancehall, surgisse a “Reggae maratón” ou Reggaeton. Se bem esse nome virou famoso no mundo junto com a música Gasolina do Daddy Yankee (2004), é preciso reconhecer as influências dessa cultura urbana, caribenha e do soundsystem neste gênero que tem abrangido uma parte muito grande da música em espanhol.

Mas Panamá não era o único lugar onde eram feitos covers de músicas em outros idiomas. Artistas e orquestras do Caribe colombiano procuravam inspiração no Caribe e na África através de ritmos como o soukous, afrobeat, mbaqanga, highlife, zouk e calypso, que eram muito procurados nos Sounds Systems ou Picós. Após uma primeira fase de covers, as músicas produzidas na Colômbia foram chamadas de “terapia criolla” e “champeta”, porque as suas letras começaram a ser em espanhol, a falar das histórias da periferia da cidade, e porque nas suas canções os sons digitais e a intervenção da música virou um novo gênero. A champeta continua a ser produzida na atualidade e tem ao redor dela um movimento político pela declaração deste gênero como patrimônio imaterial da Colômbia, pelas suas lutas, heranças e aportes².

Se bem Panamá, Jamaica e Colômbia se inserem no espaço do Caribe, o escopo proposto neste texto inclui o Brasil também. O anterior porque as múltiplas territorialidades e as influências mútuas desses fenômenos sociais tem a ver com a presença de uma cultura transatlântica negra nesses territórios. Nessas fronteiras difusas do Atlântico Negro ou Grande Caribe, o Brasil é também um ponto de trocas, explorações e inovação, como iremos ver com o fenômeno musical do Pagode.

Este gênero, também conhecido como Pagode baiano, surgiu no Nordeste do Brasil na segunda metade do século vinte. Tem a sua origem em manifestações populares de matriz africana como o samba junino, o samba duro e os Pagodes de mesa, que através do tempo se consolidaram em espaços de show e o mesmo carnaval da Bahia. Através do êxito midiático de grupos como Gera Samba, Terra samba, Gang do samba, entre outros, o Pagode baiano obteve muita popularidade no Brasil e no mundo. No meio desse boom dos anos 90, o Pagode baiano chegou a ser chamado de swingueira. O Pagode baiano está articulado com o paredão, que mesmo como o Sound System jamaicano ou o Picó colombiano se inserem em espaços periféricos, com população marginalizada e racializada, com uma identidade em disputa e práticas questionadas como “imorais” ou “violentas”, as quais “justificam” políticas e ações do poder público, como descreve Amanda Barbosa (2024, p. 16-21) no caso do Pagodão em Salvador.

Na aproximação feita neste texto ficaram por fora gêneros como o Funk, a Cumbia rebajada, a Cumbia villera, o Kuduro, o Dembow, a Salsa choke, o Gengetone, o Afrobeat, o Brega e o Bakosó, que ainda que possam ter temporalidades e contextos diferentes, podem se inserir na categoria de bailes erótico-dançantes juvenis e periféricos proposta pelo Ledson Chagas (2016). Pretende-se assim gerar uma provocação mostrando o potencial de pesquisa desses fenômenos sociais enxergando além do local para uma visão continental que seja consciente das trocas, influências, diálogos e lutas partilhadas que houve e há no nosso continente, e que nesse caso são exprimidas através da cultura na música, o corpo, o território, a política e outros eixos que não temos percebido, ainda.

 

Notas

¹ O riddim é a “base” sobre qual foram feitas muitas músicas desse primeiro dancehall. Os produtores criaram um riddim sobre o qual cantores faziam as faixas, isto permitiu a existência de muitas músicas partindo de uma mesma base.

² https://programaacua.org/la-champeta-es-reconocida-como-patrimonio-cultural-inmaterial-de-colombia/

 

Referência

BARBOSA, Amanda Gomes da Silva. “Elas que se bancam”: uma contextualização radical da mulher negra no pagodão. 2024. 210 f. il. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2024.

CHAGAS, Ledson. Corpo, dança e letras: um estudo sobre a cena musical do pagode baiano e suas mediações. 2016. Dissertação (Mestrado) – Programa multidisciplinar de pós-graduação em cultura e sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.