Crédito: Lázaro Ramos/Elo Company
Depois de muita expectativa e uma verdadeira luta para conseguir chegar aos cinemas, Medida Provisória, filme de estreia na direção de Lázaro Ramos, finalmente ganhou as salas de projeção no Brasil. O filme distópico (não tão distópico assim no país em que vivemos hoje) enfrentou grande resistência e atrasos burocráticos da Ancine, parecido com o que ocorreu com Marighella, do também estreante Wagner Moura. Em entrevista, Lázaro ressaltou: “Censura também se faz com burocracia e foi isso o que aconteceu. O flerte com a censura é expediente desse governo, a gente sabe”. Baseado na peça Namíbia Não! (2012), escrita por Aldri Anunciação e dirigida por Lázaro Ramos, o filme apresenta um futuro próximo, onde o governo brasileiro, através de um discurso de reparação histórica, aprova uma medida provisória que decreta o retorno dos melanina-acentuados para países aleatórios da África. No centro desse caos está o grupo formado pelo casal Antonio (Alfred Enoch), que é advogado, e Capitú (Taís Araújo), que é médica, além do primo de Antonio, o jornalista André (Seu Jorge). Os três moram juntos na cidade do Rio de Janeiro.
Um dos grandes destaques do filme está na construção do ‘Afrobunker’ como local de resistência dos negros que conseguiram fugir à deportação obrigatória imposta pelo governo. Aqui, retomo a proposição do quilombismo, de Abdias do Nascimento, como esta práxis afro-brasileira de resistência, que o filme constrói como um espaço formado de diversos elementos de (re)existências negras e quilombos contemporâneos, remetendo a bandeiras de escolas de samba, terreiros e gafieiras. Entretanto, a fotografia de Medida Provisória não conseguiu fazer justiça a essa direção de arte, já que acaba apresentando quadros muito fechados nos rostos dos personagens e oferecendo poucas pistas visuais da riqueza daquele local. Além disso, ocorre no Afrobunker uma cena que acredito ser problemática ao equiparar visualmente, através de uma montagem paralela, o sofrimento de um homem negro hétero, vitimado pela branquitude, e o de um homem gay branco, atacado pelos negros fugidos. Isso é feito de forma simplista e sem maior aprofundamento dentro da obra, causando confusão em um momento de clímax.
Além dessa importante entrada na construção de um quilombo que instabiliza as temporalidades envolvidas na luta antirracista, Medida Provisória brilha na escolha de sua trilha sonora, com músicas de Elza Soares, Rincon Sapiência, Baco Exu do Blues, Liniker e os Caramelows, Xênia França e Cartola. Destaco a bonita cena de afeto entre os personagens principais no apartamento onde moram, enquanto dançam ao som de Elza Soares. Cenas como essa e outras onde tais músicas ganham destaque acabam por dizer mais sobre as (re)existências negras do que diversas falas proferidas no filme. A construção e apresentação das músicas no longa acabam por mobilizar afetos e convocar engajamentos identitários, por isso referencio aqui Paul Gilroy ao destacar o papel da música nos diversos movimentos de resistências do Atlântico Negro.
Destaco ainda que a obra foi roteirizada, dirigida e teve elenco composto por artistas predominantemente negros, um passo importante para uma maior pluralidade de subjetividades no espaço do cinema brasileiro. A ausência de mais obras de grande distribuição com equipes criativas como essa é mais uma evidência de como práticas racistas marcaram e marcam a sociedade brasileira nos âmbitos da política, economia, cultura. Como exemplo, o filme Café com Canela (2017), dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio e no contexto de produção do curso de Cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), situado em Cachoeira/BA, marcou o retorno de um longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher negra após um hiato de 34 anos. Antes dele, a última obra então comandada por uma mulher negra a entrar no circuito comercial foi Amor maldito (1984), dirigido por Adélia Sampaio.
A presença e centralidade de figuras como Lázaro Ramos, Taís Araújo e Seu Jorge tem mobilizado afetivamente um público jovem e negro, com diversas ações por todo país (Reportagens 01, 02 e 03) envolvendo movimentos sociais e escolas públicas para levar esse público aos cinemas, às vezes pela primeira vez como foi para alunos de rede estadual daqui da Bahia. Algumas dessas ações foram inclusive promovidas pela própria equipe de produção do filme. Medida Provisória teve ainda bons números de bilheteria, ainda mais em meio a blockbusters de Hollywood, somando mais de R$ 2 milhões na semana de estreia.
A escolha por uma narrativa distópica e com um ponto de partida (a aprovação da medida provisória) bastante provocativo abriu para o filme caminhos potencialmente interessantes, alguns bem explorados e já destacados aqui, mas outros nem tanto. Ao retomar uma marca sua como artista nos diversos meios, Lázaro Ramos consegue inserir humor em meio a uma situação dramática, principalmente no primeiro terço do filme e na construção do personagem de Seu Jorge. Isso acaba por causar certa fissura em produções distópicas marcadamente dramáticas e com pouco espaço para leveza, como na série The Handmaid’s Tale. Inserido em um momento de intensa disputa política e social no país, com um governo marcado pela promoção de retrocessos nas mais diversas áreas, Medida Provisória coloca em causa a possiblidades do próprio Brasil ser configurado enquanto uma distopia. O filme aciona nossos temores de que medidas como a apresentada na produção não estejam tão longe assim de outros ataques a direitos de diversas parcelas da sociedade brasileira hoje.
As escolhas audiovisuais e narrativas deixam evidente certa hesitação do diretor, o que é compreensível em seu primeiro filme. Em momento nenhum a obra consegue passar o escopo que tal medida teria no país como um todo, muitas vezes parece ainda ter dificuldades de sair de uma abordagem mais contida da peça teatral da qual foi baseada. Além disso, somos apresentados de forma apressada aos personagens, dependendo apenas das boas atuações, principalmente de Seu Jorge, para que possamos nos engajar nessa trama. Mesmo questões importantes convocadas pelo filme muitas vezes são apresentadas em diálogos literais demais, pouco sutis ou provocadores. Como por exemplo quando a personagem de Taís Araújo faz um longo discurso sobre as dificuldades de ser uma mulher negra, sem que aquele momento dialogue com a trajetória e construção daquela personagem até ali, o que esvazia narrativamente um grande momento catártico. Por fim, o filme marca a entrada de um ator negro renomado no cargo de direção e indica questões centrais no racismo que estrutura a sociedade brasileira, mesmo que não consiga explorar sua premissa em toda sua potência.