“Se algo é sagrado, o corpo humano é sagrado,
E a glória e a doçura do homem o emblema da humanidade imaculada,
E no homem ou na mulher um corpo são, forte, musculoso, é mais belo do que a mais bela das faces.
Já viram o insensato que perverteu o próprio corpo? ou a insensata que perverteu o próprio corpo dela?
Pois eles não se escondem, não podem esconder-se a si mesmos” – Eu canto o Corpo Elétrico, de Walter Whitman, traduzido por Ivo Barroso
Uma fábrica de confecções numa das ruas mais conhecidas de São Paulo, a José Paulino. Entre lojas de roupas e centenas de consumidores que transitam pela localidade, eis o principal cenário do filme dirigido por Marcelo Caetano que estreia nessa quinta-feira (17). Ao abordar disputas que estão mais evidentes no contexto atual da sociedade brasileira, como a diversidade sexual e as relações de trabalho, Corpo Elétrico segue outros filmes recentes do cenário nacional preocupados com questões que nos são familiares, como Que Horas ela volta? – dirigido por Anna Muylaert, que produz o filme de Caetano – e Aquarius, dirigido por Kléber Mendonça Filho.
Corpo Elétrico conta a história de Elias, interpretado por Kelner Macêdo, jovem, gay, migrante paraibano que trabalha em um fábrica de confecções. Essas três condições perpassam o personagem o tempo todo. Longe de buscar qualquer tipo de militância, o filme de Caetano mostra a fluidez com que essas construções – do ser gay, nordestino e trabalhador de uma fábrica – parecem indicar as condições específicas em que os corpos dos brasileiros são regulados. É a partir desses três eus que o caracterizam que Elias vai construir sua experiência na cidade de São Paulo. Alguém que está longe de casa, que não tem qualquer contato com a família, e que explora a maior cidade do país em seus contrastes e contradições.
Há, no filme, a explicitação de uma experimentação livre de sexualidade em que as relações são construídas contrariamente à ideia de amor romântico, com Elias tendo todas as relações afetivas, sejam sexuais ou não, que queria ter. Na linguagem dos corpos, a naturalização da nudez tenta construir essa liberdade do corpo – o corpo que explora suas possibilidades, que entende as experiências atravessadas pelo contexto. Há uma tentativa de fugir dos modos hegemônicos pelos quais o cinema tradicional constrói o corpo homossexual. Corpo Elétrico constrói essa poética do desejo pela exaltação da liberdade dos corpos – do gay, do negro, das drag queens, do operário.
O corpo elétrico que intitula o filme é esse corpo que, catarticamente, se opõe à regulação das ordens sugeridas e engendradas socialmente através de instituições que determinam a operação dos corpos sujeitos. E, no filme, a padronização dos corpos que aparece no ambiente do trabalho operário, sutilmente sugerida por seus patrões e marcadas por planos como o dos trabalhadores andando pela José Paulino, dão a dimensão de como os personagens do filme tentam extravasar essas marcas históricas que definem padrões dos corpos e das sensibilidades do sujeito. O título do filme foi tirado do poema de Walter Whitman, uma ode ao corpo humano, seja ele masculino, feminino, nas fábricas e fora delas. O corpo que é uma conjunção de afetos, que é constrangido por certas regras e as subverte.
Ao personagem principal é sugerido não se misturar com os outros empregados, não se importar com seus colegas – numa das cenas, uma empregada, já senhora, começa a sentir o braço doer de trabalhar, mas quer continuar –, e almejar uma viagem que, muito dificilmente, o morador de uma quitinete poderia realizar. Na meritocracia brasileira, a quem “quer ir longe” não é permitido qualquer tipo de interação que não esteja prescrita pelos donos do dinheiro e por metas irrealizáveis. Não é permitido habitar aquelas forças produtivas sem que as regras para os corpos, para a interação entre os sujeitos, sejam definidas em prol do enriquecimento dos patrões. Enquanto os empregados trabalham em sistema de plantão para dar conta das encomendas de final de ano, a dona da confecção diz que irá monitorar tudo do exterior.
Ao mesmo tempo, é longe dos muros da fábrica que esses corpos ganham suas formas livres, e disputam seus espaços com outros corpos heterossexuais, por exemplo. A impressão é que Marcelo Caetano nos convida a experienciar as vivências de cada um daqueles corpos, sejam os corpos que exibem suas performatividades de gênero, e tensionam na politica da vida cotidiana o espaço para a diversidade sexual, sejam os corpos dos trabalhadores, tão diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, tão homogêneos quando captados pela tomada em plano geral, onde se vê a “boiada” partindo no fim do expediente.
O mesmo exterior de onde vêm muitos dos trabalhadores mal remunerados daquele tipo de fábrica – não são poucos os relatos de bolivianos, outros latinos, africanos e nordestinos trabalhando nesses lugares em condições de trabalho ainda piores do que os mostrados pelo filme. O lugar da migração nesta relação que se estabelece com o mundo do trabalho é marcado ainda pelo personagem Filipe, interpretado por Welket Bungué, por quem Elias passa a nutrir certo interesse. Nascido na Guiné-Bissau, Filipe consegue na fábrica uma oportunidade de enviar dinheiro para seus parentes e, ainda que não corresponda à paixão evidente do seu colega, cria com ele uma relação de amizade, sem problemas, na contramão do que poderíamos pensar no Brasil de temeres e afins.
Entretanto, em contraponto a esses planos fílmicos que explicitam a regulação capitalista, o diretor apresenta outros, como as sequências dos trabalhadores indo para uma festa ou ainda a de um grupo de drag queens – a Família Pantera, de quem Elias se aproxima – voltando de um dia de apresentações. É no seio da cultura popular, no divertimento e na carnavalização, que as resistências vão ganhando sentido em Corpo Elétrico, e mostram sua carga política inscrita na materialidade desses corpos. É o corpo subvertido a que se refere Whitman e que é reforçado por Caetano. Os corpos de Elias, Wellington, trabalhador da fábrica, gay e negro, interpretado pelo ator Lucas Andrade, integrante da Família Pantera, Filipe e dos outros empregados, explicitam as relações entre as contradições e tensões do sistema capitalista e padrões dominante-hegemônicos de sexualidade. Corpo Elétrico parece romper com formas corporais marcadamente históricas – a virilidade do operário que se confronta com o trabalho criativo da moda; a submissão às condições do sistema e a coragem de manter o sustento através de apresentações artísticas como drag queen; a relação dos corpos com o urbano, o lugar de encontro entre sujeitos e seus modos de habitar o mundo.
Thiago Ferreira é mestre e doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas e pesquisador do TRACC
Edinaldo Mota Júnior é mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e pesquisador do TRACC