“Conaissez vous l’histoire de…” é um podcast francês produzido e publicado pela rede Binge Audio, lançado em janeiro de 2020. O programa propõe contar histórias com “H” minúsculo, como anuncia em seu trailer de lançamento, um contraponto às histórias de heróis e heroínas que remetem a períodos históricos que são tidos como marcos, como as guerras, segundo os produtores. “Às vezes esquecemos que aquelas e aqueles que fazem a história, a constroem, a atravessam e a vivem, são as pessoas como você e eu”.
A criadora, Juliette Livartowski, propõe partir de um evento desconhecido ou esquecido para contar as histórias de personagens reais, em uma duração entre 16 a 36 minutos, tornando-as mais “palpáveis e íntimas”. A proposta do programa é de uma escuta atenta, feita à noite, de preferência na cama. Dessa forma, os produtores esperam que seu público dedique uma atenção plena ao podcast.
Lançado em 2020, “Conaissez vous l’histoire de…” contava com 9 episódios publicados. Desde a sua primeira publicação, o programa contou histórias de personagens como das de Imad Bouhoud , um jovem de 19 anos assassinado por um skinhead na França, e Jessikka Aro , uma jornalista finlandesa que investigou empresas russas responsáveis por guerra de informação. Os programas utilizam uma linguagem comum a podcasts que se dedicam a contar histórias: a narração da apresentadora, utilização de sons ambientes para a composição de cenas externas e a utilização de música para a ambientação narrativa. Há também a possibilidade, como indicado no programa que apresenta a produção, que narradores convidados criem séries especiais, como é o caso da série de cinco episódios “À la recherche de Jeanne ” (Em busca de Jeanne), narrado pela jornalista Zazie Tavitian sobre a vida de sua bisavó, deportada da França e morta em um campo de concentração nazista.
A programação normal do podcast, que propunha dois programas por mês e duas séries especiais por ano, foi modificada após o anúncio do confinamento como medida governamental de combate ao coronavírus na França, iniciado em 17 de março de 2020. De 30 de março a 29 de abril, alguns dias antes do fim do confinamento anunciado pelo governo francês, uma série de podcasts curtos, chamados de “Pépite”, tomou lugar no feed às histórias originalmente programadas. Apesar de escutar e analisar o podcast ao longo de sua história, dedico esse texto a esse momento específico, relacionando-o ao objetivo de buscar um gesto catastrófico às audiovisualidades em torno do coronavírus. O objetivo do texto é pensar a catástrofe como figura de historicidade , ao tentar ver as relações com o tempo a partir de um gesto catastrófico que atordoe as relações temporais, “um movimento de estranhamento, de desfamiliarização com o mundo, de atordoamento”(LEAL; GOMES, 2020). O gesto catastrófico concentra a nossa atenção ao inconveniente, e pretende não ceder às tentativas de estabilizações do fenômeno, principalmente às tentativas de ordenação e regulação atreladas à concepções modernas do tempo (LEAL; GOMES, 2020).
O primeiro episódio lançado durante o confinamento foi publicado no dia 30 de maio, com o título de “Langoustines et jus de pamplemousse ”. Na justificativa para os episódios extras, a narradora diz que imagina que todos já estão cansados do confinamento, das injustiças, da doença, cansados de não saber quando isso vai “parar”. O grito desesperado como sonoplastia para indicar esse mal estar, já no início do programa, é colocado como um contraponto para a proposta da nova série. Com uma música calma, o programa segue: a melhor coisa a fazer é dar um tempo, duas vezes por semana, para respirar, rir um pouco. Dessa forma, ela propõe o podcast como uma forma de ajudar a “viver melhor o confinamento” sem falar do vírus. O episódio é dedicado à uma paródia, criado no twitter pelo jornalista Matteu Maestracci, que começa com a contagens dos dias. “Confinamento, dia 3”. Muitas produções audiovisuais dedicadas ao período tentam fazer referências a momentos em que o isolamento e o exílio existiram na literatura, no audiovisual, e a contagem dos dias é umas referências mais comuns. Vemos produções do presente sendo aproximadas a gestos que mimetizam as prisões, o ato de contar os dias do confinamento, da pandemia, esses gestos nos remetem a uma relação com o tempo que é de suspensão e espera de mudança e de conclusão. Suspensão da normalidade, suspensão da programação normal dos programas que costumamos assistir ou escutar. Isso é também demonstrado pela necessidade e a iniciativa de realizar programas extras, especiais, dentro de uma programação que já estava estabelecida, indicando outras temporalidades dos programas, em referência a outras temporalidades do cotidiano de quem os consome e das condições de produção.
No caso desse podcast, o fluxo normal dos programas é interrompido e substituído pelas “pepitas”, um nome que remete a uma outra duração do tempo, menor, mais lento, menos custoso para os ouvintes, mas também para os produtores, sem esquecer o sentido que o aproxima à analogia de um material em estado bruto, não lapidado, publicado desse modo devido às circunstâncias do momento. O podcast abandona a sua proposta inicial de ser um momento de escuta, de atenção plena, de uma história densa e importante, mesmo de pessoas tidas como desconhecidas, e propõe episódios menores, curtos, que não exigem do ouvinte. A mudança na temporalidade do programa e a elaboração dos programas especiais chamados de “Pépite”, constroem e reforçam relações temporais de suspensão do tempo do cotidiano anterior ao coronavírus, que é marcada pela suspensão da periodicidade anterior do podcast e pela mudança da estrutura e do tema dos programas. Relacionada também às condições de produção, de teletrabalho que os produtores também estavam submetidos, reforça uma relação temporal que tenta se aproximar de seus ouvintes, confinados por uma medida governamental de combate à pandemia. As pepitas marcam uma relação de suspensão temporal reforçada pela decisão de finalizar esses episódios especiais após o anúncio do fim do confinamento, que seria realizado em 11 de maio. Com o fim do confinamento, acabam-se as pepitas.
A paródia do jornalista, recontada em áudio no primeiro episódio, se refere às formas como as pessoas estão narrando seus dias confinados. “Não sei como vocês estão vivendo o confinamento, mas há pessoas que estão muito bem”. Cheia de referências que remetem ao consumo e estilo de vida muito distante da maioria das pessoas, como aproveitar o tempo no jardim de inverno, preparar lagostins para o jantar, nadar livremente em uma praia com entrada privada, essa narração paródica também é composta de lições de vida que o período do confinamento traria ao personagem fictício, que finalmente tem tempo para repensar a sua vida, sem deixar de lado a angústia e a instabilidade emocional que a pandemia traz para ele. O fato de que há pessoas passando o confinamento de forma privilegiada é descrito pela narradora como “deprimente”.
Desde o primeiro episódio que descrevemos, vemos que o programa faz um esforço de entender, narrar, antecipar e receber relatos dos próprios ouvintes sobre como eles estão vivendo o período do confinamento, o que estabelece algumas relações com o tempo e construção de mundos que podemos observar. É ilustrativo desse movimento o terceiro episódio “Ce qui nous fait du bien”, em que a narradora reconta as mensagens enviadas no Twitter pelos ouvintes e seus seguidores sobre as coisas, pessoas e momentos, que os fazem se sentir bem durante o confinamento. É uma referência à produção anterior da autora, o podcast A dérouler, que se dedicava a contar histórias primeiramente publicadas em sequências de tweets. Fazer pão, brincar com o gato, esperar o momento que as crianças finalmente dormem, terminar um dia de trabalho remoto, aproveitar refeições na varanda, aplaudir os trabalhadores essenciais na janela às 20h, ouvir música, jogar o vídeo game do momento, Animal Crossing…, redescobrir o prazer de ler, rir apesar de tudo, assistir às lives, jogar The Sims para sentir a sensação de liberdade de poder ir trabalhar e ir aos restaurantes.
Todas essas ações lidas em sequência constroem uma narrativa de tempo e de sujeitos que estão confinados, mas invisibilizam a parcela da população que é impedida por seu trabalho de proteger a si mesmos e às suas família do vírus, como os trabalhadores de supermercados, dos serviços de alimentação, os serviços de saúde, além daqueles ainda mais afetados pelas demais crises do capitalismo, como a população de rua, os trabalhadores informais, os refugiados, etc. Essas pessoas, ações e o que elas fazem para se sentir bem depois de um dia de trabalho sequer são citadas. A ajuda às pessoas em situação de vulnerabilidade é citada nos minutos finais, em que são descritas iniciativas de solidariedade. Dessa forma, o podcast tenta construir um espaço em que o sofrimento pela pandemia, e suas implicações sanitárias, sociais e econômicas são colocadas em uma perspectiva de alteridade. É uma suspensão do tempo e do espaço dentro da própria suspensão de tempo proposta pelos sentidos de “quarentena” e “confinamento”, em que os mortos, os doentes, a vulnerabilidade social, o medo da contaminação ficam de fora. Isso aparece, no final do episódio, como o Outro que precisa ser ajudado. Podemos aproximar esse movimento à paródia do primeiro episódio, em que as ações de um personagem fictício que aproveita seu confinamento lendo à beira-mar e tirando conclusões filosóficas do seu sofrimento, são consideradas “deprimentes” ou dignas de riso, acrescentando uma perspectiva moral e reguladora do que é considerado correto ou não nas formas de lidar e nas condições materiais do período.
Dentro da proposta do inicial do Conaissez vous…, de contar a história de pessoas normais, os invisíveis da história, as pepitas se voltam ainda mais para o cotidiano e para a construção de um comum ensimesmado, para o ambiente doméstico, inscrevendo outros sujeitos na história, diferentes daqueles que eram personagens no curso normal do programa. Ele deixa de ser dedicado aos nomes que não são conhecidos do grande público, mas que pela proposta do tema deveriam ser, e que nomeavam cada episódio antes do confinamento, e passa a ter episódios dedicados aos sem nome, às pessoas que estão confinadas em casa. Ao fazer isso, ao mesmo tempo, marcam, constroem e excluem outros mundos a partir dessas histórias: os trabalhadores essenciais, a população de rua, os doentes e os mortos, que ficam de fora desse cotidiano narrado e aparecem como o outro, a partir da solidariedade e da ajuda, a partir de uma posição de privilégio de quem pode ficar em casa em confinamento e ainda é capaz de ajudar com doações. Reconhecem, no entanto, que você pode até aproveitar e tentar ver alegrias cotidianas, mas não demais, porque relatos de pessoas tendo bons momentos devido às suas posições de privilégio dentro de uma pandemia são consideradas “deprimentes”.
Outra relação temporal reconhecida no podcast é a projeção e criação de futuros como indício das relações temporais que as audiovisualidades propõem nesse momento. O episódio “Je rêve d’un monde” (Eu sonho com um mundo…) elenca um mundo sem capitalismo, ecológico, sem patriarcado, em que os carros voadores do filme De volta para o futuro realmente existam, feminista, mais tolerante, cheio de beijos, um mundo em que os discursos do presidente Emmanuel Macron não sejam apenas discursos, um mundo lésbico, um mundo menos americano e mais italiano, sem fakes, anarquista, mais tranquilo, onde a natureza seja respeitada, “eu sonho um mundo desconfinado”, onde exista seguridade social para todo mundo, um mundo sem dinheiro… são alguns dos desejos elencados. Ilustra, nesse período em que o tempo “normal” do podcast é interrompido, o desejo de que a pandemia do coronavírus resulte em melhorias das condições de vida. Aponta para um dos entendimentos de nosso tempo de que a pandemia é causada pelas estruturas sociais, ecológicas e socioeconômicas do capitalismo.
O último episódio dessa série sobre o confinamento termina no dia 29 de abril, alguns dias antes do fim do confinamento na França. Após esse período, o podcast retoma sua programação normal com a publicação da história da drag queen Pepper LaBeija, um programa maior, de 13 minutos, que retoma a estrutura comum aos demais episódios anteriores ao confinamento. O antes e depois do confinamento, no programa, coloca a narração de um tempo em que a cronologia do que se coloca como crise parece encaminhada para uma resolução. Na França, isso acontece em paralelo às medidas de abertura do comércio local, ao fim da limitação e proibição de deslocamento e, também, segue-se a uma diminuição do número de mortes por coronavírus.
Nesta tentativa de colocar em catástrofe as relações temporais estabelecidas por essas audiovisualidades, noto que existem temporalidades diferentes da pandemia, criadas a partir das formas como esses programas audiovisuais narram o tempo. O desejo de resolução e mudanças sem propostas que superem à solidariedade inscrevem o Conaissez vous… em uma estrutura temporal linear, que propõe um antes e um depois para uma crise localizada, construída, marcada pela decisão de voltar à periodicidade regular após o fim do confinamento. A abertura do governo francês para algumas atividades comerciais, a partir de 11 de maio, marca o fim de uma suspensão temporal do podcast, e estabelece uma relação de antes e depois. Essa resolução da crise, que é uma marcação temporal construída não só pelo programa, mas pelo próprio entendimento de uma “crise do coronavírus”, não é possível em um mundo em que as condições para a emergência do vírus e suas consequências ainda persistem. O antes e depois do confinamento funciona como uma tentativa de demarcação do tempo e mostra uma relação temporal marcada por espacialidades específicas de sujeitos que estavam impedidos de sair de casa e se locomover pelas cidades. O antes e depois da crise denota, como uma solução simples, que essa crise é passível de resolução, mesmo que as condições para a sua emergência não tenham sido superadas.
Referências
LEAL, B. S.; GOMES, I. M. M. Catástrofe como figura de historicidade: um gesto conceitual, metodológico e político de instabilização do tempo. In: Anais…. 2020.
RIBEIRO, A. P. G.; LEAL, B. S.; GOMES, I. M. M. A historicidade dos processos comunicacionais: elementos para uma abordagem. In: MUSSE, C. F.; VARGAS, H.; NICOLAU, M. (Ed.). Comunicação, mídias e temporalidades. Salvador: Edufba, 2017. p. 37–58.