As drags não conhecem o paraíso

“Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível”, escreveu Caio Fernando Abreu, no livro “Os dragões não conhecem o paraíso”, em que o autor trata de personagens à margem da sociedade, tais como homossexuais. São, no seu entendimento, os “dragões”.

Certa noite de terça-feira, eu fui performar no Âncora do Marujo, um dos mais importantes bares da cultura LGBTQIA+ de Salvador, quando nesse dia da semana era apresentada “A terça mais estranha do mundo”, sob o comando de Malayka SN, do Coletivo “Casa Monxtra”. Nessa noite, em especial, conheci uma drag queen cujo nome era “Dragona”. Sua estética não se conformava à hegemonia de feminilidade, e “Dragona” tanto me remeteu ao aumentativo de drag quanto a um ser poderoso como um dragão. Além disso, “dragão” se refere, em termos coloquiais, a uma pessoa que é feia, fora dos padrões estéticos hegemônicos.

 

Fonte: https://youtu.be/n7D42ECeBjI

 

É certo que os dragões aparecem nas mais diversas mitologias e estão espalhados pela cultura pop, muito propagados em livros de fantasia, filmes e séries, como Coração de Dragão (1996), O Senhor dos Anéis (2001), Eragon (2006), Harry Potter (2001-2011), Game of Thrones (2011-2019) e tantos outros. São figuras enigmáticas, mas sempre representadas como grandiosas.  Em algumas culturas, os dragões representam sabedoria e força. Em outras, o mal, a ameaça à civilização . São, em muitas das histórias ficcionais, mal compreendidos devido a sua aparência bestial. Na Bíblia, por exemplo, há um dragão vermelho descrito no livro Apocalipse, com suas sete cabeças e dez chifres, associado muitas vezes à figura de Satanás, inimigo do “povo” de Deus.

Pessoas da comunidade LGBTQIA+, e, dentro deste amplo espectro, as drag queens, são vistas, muitas vezes, como inimigas do “povo” de Deus. Vítimas de violência física e psicológica devido à intolerância, justificada em grande parte por um viés religioso e moral, as pessoas LGBTQIA+ são mortas e violentadas com frequência cada vez maior.

Drags e Dragões podem assustar, mas também exercer fascínio. No que diz respeito às drag queens, esses “estranhos” seres que comumente rondam as noites, Guacira Lopes Louro afirma que a drag é “feita deliberadamente de excessos, ela encarna a proliferação e vive à deriva, como um viajante pós-moderno” (LOURO, 2018, p.20). E por tais excessos, a drag queen, quando em público, “revela não só o preconceito, a intolerância e o desconhecimento, mas também um certo pânico pelo perigo que a drag oferece ao se mostrar de forma tão híbrida, jocosa e monstruosa” (CAMPANA, 2003). A drag também critica e enfrenta. É inegável o papel crítico que a drag exerce em relação aos costumes que ela busca contrapor, embora sejam, muitas vezes, cooptadas por processos hegemônicos que podem apagar sua potência. Pensemos, por exemplo, no que a busca incessante por se enquadrar num ideal de feminilidade pode causar.

Em “Ecologias de dragões” (2018), Chinellato e Gaiotto de Moraes tratam o olhar dos dragões como “um dos aspectos mais antigos e regulares presentes nas narrativas dos dragões”, como na narrativa do Leviatã, da Bíblia Hebraica e nas mais recentes, como de J.R.R Tolkien, em que encarar um dragão pode levar a loucura, mas “quando se permite encarar o olhar do dragão o que se vê é o próprio reflexo”. Os autores recuperam uma relação entre o homem e a natureza a partir do dragão como metáfora nas diferentes épocas. Antes, esses “monstros” só podiam ser vencidos pelos deuses. A partir do Iluminismo, ele pode ser vencido pela inteligência humana. Em algumas narrativas do século XX e XXI, os dragões começam a ser permeados pelas ideias de manipulação genética nos livros de Anne McCaffrey (1967) (que trata, inclusive, de relações homossexuais psíquicas entre dragões e seus domadores), posteriormente os dragões se tornam animais dominados que podem servir como montarias (Eragon, Game of Thrones etc), além de outras que os colocam como vítimas que precisam ser salvas, principalmente em narrativas infanto-juvenis, onde há uma inversão da ideia de matador de dragões para salvador, aliado às transformações estéticas das bestas, como em “Como treinar o seu dragão” (2010). Recentemente, na série “The Witcher” (2019), baseada nos livros de Andrzej Sapkowski e nos games homônimos, o protagonista Geralt de Rivia tem a filosofia de não caçar seres inteligentes como os dragões.

Chinellato e Gaiotto anotam:

Dragões começaram sua jornada como mito, mas, assim como o conteúdo da narrativa, o que é considerado mito e a forma de contar histórias mudam com a própria sociedade. De desenhos em cavernas a xamãs iluminados pela luz da fogueira, de runas em pedras ao texto digital, ou, ainda, o cinema, cada sociedade narra suas histórias de forma diferente e considera míticos diferentes símbolos, adequando-se à cultura e às tecnologias correntes (CHINELLATO e GAIOTTO DE MORAES, 2018).

 

De certa forma, drag queens também são encaradas de maneiras diferentes conforme muda a sociedade. E, antes, seres misteriosos restritos aos guetos, passaram a ocupar outros espaços, seja na televisão, filmes, séries, música etc.

Os autores ainda refletem: “O grande medo dos olhos do dragão, portanto, na atualidade ao menos, pode ser o de encarar o próprio reflexo e, talvez, não gostar do que se vê”.

Finalizo essas breves linhas com um excerto de Fernando Caio de Abreu, autor a partir do qual iniciei o texto: “Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia”. Mudando-se o sujeito, percebe-se que o referido trecho contempla não só as drag queens, como também todos aqueles que, de alguma forma, buscam encontrar-se em um mundo concebido e desenhado para os “caçadores de dragões”.

 

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Referência

 

CAMPANA, Nathalia Sato. O ato político por trás da Drag Queen: desmontando o essencialismo dos gêneros. São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-04102017-173641/publico/campana_ me.pdf.

CHINELLATO, G. ; MORAES, R. G. . Uma ecologia de dragões. FRONTEIRAZ , v. 21, p. 247-264, 2018.

LOURO, G. L. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.