Muitos são os textos e pesquisas que tratam da violência ditatorial em seu nível mais macro, de como as liberdades coletivas e institucionalidades foram atingidas pela censura, violência e arbítrio. Mas como era a relação da ditadura civil-militar do Brasil na vida cotidiana das pessoas? É principalmente a falar sobre isso que se propõe o filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, e estrelado por Fernanda Torres, no papel de Eunice Paiva, e Selton Mello, no papel do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva.
Rubens Paiva foi sequestrado por agentes policiais em sua casa, detido para suposto depoimento, e é um dos desaparecidos da ditadura. O filme conta a história de quem fica, abordando como o desaparecimento afetou toda a família de Rubens Paiva e evidencia a importância que tiveram as comissões da verdade durante o governo Dilma Rousseff. Frente à(s) anistia(s) que tenta(m) apagar a nossa história, foram essas iniciativas que permitiram que parte do que aconteceu na ditadura civil-militar, responsabilidades e atos de agentes públicos e privados, pudessem ser conhecidos. Marcelo Rubens Paiva, autor do livro “Ainda Estou Aqui”, obra adaptada para o cinema, afirma que foi a Comissão da Verdade que possibilitou que essa história pudesse ser contada.
“Ainda Estou Aqui” expõe momentos distintos de uma suposta normalidade. A família abastada, proprietária de uma casa no Leblon frequentada por artistas, intelectuais, militantes dos direitos humanos. Amigos reunidos pra ouvir música. Fotografias. Vídeo e cartas com novidades da viagem de uma das filhas a Londres. Um cachorro querido. A filha rebelde que namora um rapaz moderninho.
Momentos retratados no filme sob uma luz solar, contrastando com o clima soturno que se apresenta quando a mesma família tem a vida profundamente atravessada pela violência. Todas as pessoas, ainda que não conscientemente, foram atravessadas por aquele período. Enquanto os tanques e soldados circulavam com mais força e o marido estava desaparecido, Eunice Paiva tentava firmemente manter um grau de normalidade familiar perante os seus cinco filhos. É também na permanência do sorriso e dos encontros que ela luta contra a ditadura.
Os afetos políticos – engajamentos identitários – são cotidianos, estão conectados às experiências das pessoas, como nos diz Kathleen Stewart. “Afetos comuns são capacidades variadas e crescentes de afetar e ser afetados que dão à vida cotidiana a qualidade de uma moção contínua de relações, cenas, contingências e emergências” (Stewart, 2007, p. 1-2). Para a autora, são sentimentos públicos que se relacionam também com as vidas privadas.
É no afeto cotidiano que “Ainda Estou Aqui” localiza os nefastos efeitos da ditadura. É aí que vemos Eunice Paiva, uma mulher dona de casa, esposa de um ex-parlamentar, sendo obrigada a buscar uma carreira para sustentar a família, mas também para lutar por memória, verdade, justiça e reparação. Eunice se torna uma renomada advogada defensora dos direitos humanos, principalmente dos direitos indígenas, e consegue fazer com que o Estado brasileiro reconheça que Rubens Paiva morreu enquanto estava sob guarda estatal.
A memória não é algo que diz sobre um passado, mas sim aquilo que pode efetivamente romper a linearidade do tempo a fim de que algo possa mudar presente e futuro e restituir direitos que foram negados naquele passado – como o direito à vida de Rubens Paiva e tantas outras pessoas, como indígenas que foram assassinados durante as grandes obras da ditadura civil-militar e vão ser assistidos pela advocacia de Eunice Paiva anos mais tarde.
“Ainda Estou Aqui” nos mostra enfim que a luta que emerge no cotidiano a partir da ausência acaba reorientando toda a vida de Eunice Paiva e daquela família, mas de todas nós. E é a partir das nossas experiências cotidianas que podemos transformar os elementos autoritários que conformam a sociedade brasileira até os dias atuais.