Reassistir faz parte da cultura televisiva brasileira. Quando reassistimos alguma coisa, algo de reconfortante nos toma. Seja pela familiaridade com a história, seja pela lembrança do tempo em que tivemos o contato com aquela obra pela primeira vez.  Faixas como o “Vale a pena ver de novo” da TV Globo, as reprises das novelas mexicanas e do “Chaves” no SBT, das novelas bíblicas e de “Todo mundo odeia o Chris” na Record, são exemplos disso: o brasileiro gosta de reassistir os seus programas de televisão favoritos e por isso as emissoras preenchem parte da sua grade com esses títulos “requentados”.

Na pandemia, com a impossibilidade de gravações das novelas nos estúdios por conta do isolamento social, grande parte da programação do horário nobre, especialmente da Rede Globo, maior produtora do gênero no país, passou a ser ocupada por reprises. E os títulos escolhidos para serem reprisados acabaram por manter os bons níveis de audiência, levando a emissora a criar outros dois horários para reprises: em dezembro de 2021, foi criado um espaço na grade da tarde, antecedendo o “Vale a pena ver de novo”; e, em maio de 2022, as madrugadas passaram a ter uma faixa exclusiva para reprisar novelas das sete. A emissora vem também investindo nos remakes de grandes novelas como estratégia de alavancar sua audiência nos últimos anos, o que também nos deixa ver como os afetos dos espectadores são acionados em torno de cada título que ganha uma nova versão e como distintas expectativas são mobilizadas em torno da escalação do elenco que viverá os personagens na nova versão, ou como o texto será atualizado.

Juma Marruá no remake de Pantanal, exibido em 2022. (Foto: Divulgação/TV Globo)

 

Talvez o caso mais emblemático sejam as diversas refilmagens de “Éramos seis”, originalmente exibida pela Record em 1958, e que ganhou novas versões na Tupi em 1967, no SBT em 1994 e mais recentemente na Globo em 2019. O SBT também produziu refilmagens dos clássicos infantis “Carrossel” e “Chiquititas”. Outros tantos títulos ganharam remakes ao longo das últimas décadas, mas chamamos aqui atenção para os últimos anos, onde esse movimento se acentuou ainda mais. O remake da novela “Pantanal”, que estreou em março de 2022, encontrou um horário nobre com tendência de queda na audiência. Sua antecessora, “Um lugar ao Sol”, primeira novela inédita das 21 horas após a sucessão de reprises durante o período mais recrudescido da pandemia, não emplacou. A Globo passaria então a explorar essa estratégia com mais frequência, com as refilmagens de “Elas por elas”, “Renascer” e “Vale Tudo”, que tem previsão de estreia para março de 2025 e que faz parte das comemorações de 60 anos da emissora. Em entrevista à Revista Veja, o pesquisador Mauro Teixeira atribui esse movimento a uma crise criativa, uma vez que “não está fácil encontrar novelistas de fôlego, criativos, com novas propostas (…) então, muitas vezes, aparentemente é mais fácil recorrer a um título de sucesso e que está no inconsciente coletivo”. A preocupação com o retorno comercial das obras e a competição pela atenção do público com o avanço e popularização das plataformas de streaming no país também explicam a onda de refilmagens. Em matéria publicada no portal Meio e Mensagem, Allan Lico, vice-presidente de produção e conteúdo da Endemol Shine Brasil, diz que “a pressão pelo retorno, pela otimização de recursos e a competição pela audiência estão maiores e apostas em algo que já deu certo no passado, é mais seguro do que apostar em novos títulos”.

Para além do evidente interesse comercial que a Globo tem feito a partir do investimento nos remakes, esse movimento também nos faz ver uma reafirmação do lugar de centralidade da TV, e em especial da emissora, em nossas práticas culturais cotidianas, uma vez que a partir dessas obras revistadas é feita uma incursão no imaginário popular coletivo e nos engajamentos afetivos do brasileiro em torno dessas histórias e da nossa própria história e identidade enquanto país. Rever Pantanal ou Renascer em suas novas versões, por exemplo, é também olhar de novo e de forma atualizada para o momento em que essas novelas foram produzidas originalmente, é uma forma de fazer essas distintas temporalidades se encontrarem. E essas memórias e afetos vão entrando em disputa com os modos de sociabilidades e ritualidades das gerações mais novas, para quem essas obras podem ser lidas como tão inéditas quanto qualquer outra – o que não garantiria o sucesso comercial apontado na entrevista do vice-presidente da Endemol.

Essa cultura da reassistibilidade tem se mostrado ainda mais presente a partir do fortalecimento do Globoplay justamente a partir de uma revisita constante ao seu próprio acervo. Ainda em 2020, o Globoplay começou a investir mais incisivamente em disponibilizar novelas do acervo Globo, levando para o streaming uma tendência que a Globo já havia iniciado em 2010 com o lançamento do Canal Viva. Em maio daquele ano, a plataforma fez o anúncio do lançamento do projeto “Resgate”, iniciativa que disponibilizaria a cada duas semanas um novo título da teledramaturgia da emissora, começando por “A favorita” de João Emanuel Carneiro, exibida na faixa das nove em 2008 – e que seria reexibida em 2022 na nova faixa vespertina de reprises da emissora. Fazem parte da estratégia de utilização do acervo da emissora através do Globoplay outras duas iniciativas: o projeto “Originalidade”, que atualiza com melhores resoluções as obras já disponíveis no catálogo; e o projeto “Fragmentos”, que fora lançado em janeiro de 2024 e que vem se debruçando sobre obras mais antigas e incompletas do referido acervo.

Em matéria publicada no Gshow, plataforma de entretenimento da emissora, o texto diz que “a teledramaturgia contribui para a história, estimula debates e reflete a pluralidade do país” e o lançamento do projeto Fragmentos reforça “o compromisso com a memória da cultura, da dramaturgia brasileira e a valorização do audiovisual nacional” com a expectativa de que “estudiosos, pesquisadores e amantes das novelas possam conhecer mais a história da teledramaturgia nacional”. As novelas disponibilizadas pelo projeto na plataforma de streaming possuem de dois até vinte capítulos preservados de seus acervos originais. Obras de grandes escritores como Janete Clair, Bráulio Pedroso, Lauro César Muniz, Vicente Sesso, Benedito Ruy Barbosa, Mário Prata e Manoel Carlos estão sendo disponibilizadas ao público desde o início de 2024, com previsão de lançamento de 28 títulos até 2025. Em julho de 2024, quando esse texto foi escrito, nove obras já estavam disponibilizadas: “Fogo Sobre Terra” (1874), “O Rebu” (1974), “Estúpido cupido” (1976), “Gina” (1978), “Os Gigantes” (1979), “Coração Alado” (1980), “Chega Mais” (1980), “Sol de verão” (1982) e “Voltei pra você” (1983).

No vídeo de divulgação de “Fragmentos”, também disponível no Gshow, acompanhamos um jovem que está navegando pelo catálogo da Globoplay e é transportado para dentro do acervo de mídias físicas da Rede Globo, sendo guiado pela voz do ator Tony Ramos. Em seguida, vemos o depoimento de dois profissionais que fazem parte dos projetos, que dizem do processo de digitalização, mas também rememoram o incêndio que acometeu a emissora em 1976 e que comprometeu parte do seu acervo, o que explica porque essas obras do projeto “Fragmentos” foram disponibilizadas incompletas. Na história da televisão brasileira, não são raros os casos de incêndios que puseram em risco a segurança dos acervos das emissoras. Somente no ano de 1969, as TVs Record, Bandeirantes e Globo viram suas estruturas serem acometidas pelo fogo, esta última por três vezes neste mesmo ano e outras três nos anos de 1970, 1971 e o já citado de 1976, que comprometeu, segundo aponta matéria do Estadão, a primeira edição do Fantástico, além de 80% dos números musicais gravados para o programa até então, além de capítulos das novelas “O espigão”, “Irmãos Coragem”, do programa “Vila Sésamo”, dentre outras obras.

Acessar fragmentos de obras é uma prática que há muito faz parte de quem acompanha, curte ou pesquisa TV. O programa Vídeo Show, da Rede Globo, exibido entre 1983 e 2019, tinha parte considerável de cada episódio baseada no resgate de trechos de programas da casa, que eram reprisados, analisados, comentados e remixados com outros trechos pela edição do programa, uma forma que a Globo encontrou de utilizar seu vasto acervo de modo a por temporalidades distintas em diálogo através da sua programação. No YouTube, canais como Mofo TV, que já soma quase 43 milhões de visualizações, fazem também esse trabalho de pesquisa e disponibilização de trechos de programas antigos, a fim de fazer reverência ou trazer curiosidades e comparações com programas em exibição atualmente, que é o caso do perfil @Zamenza alimentado por Sérgio Santos no X, antigo Twitter. Apesar de comentar programações atuais de diversas emissoras ao longo do dia, sempre disponibilizando trechos curtos que são amplamente replicados pelos seus seguidores, chamou atenção durante a exibição de “Pantanal” e “Renascer”, por exemplo, a postagem de trechos das primeiras edições e das atuais, sempre seguidos de comentários de críticas, elogios e demais observações contrapondo as diferentes versões das obras. Em proposta parecida, o perfil @acervonovelas, que põe em diálogo trechos de novelas de épocas e emissoras diferentes, dá a ver uma ritualidade que privilegia uma vocação à cultura do meme e da viralização em um cenário de hiperconectividade cognitiva que entrelaça temporalidades distintas, movimento que a Globo lança mão com a disponibilização do projeto “Resgate” em suas diversas fases na sua plataforma de streaming, fortalecendo a cultura da reassistibilidade, um valor dominante na historicidade da televisão brasileira.