Reivindicações das imagens ausentes: (afro)fabulações como estratégias analíticas e políticas na diáspora africana

(Atlântico, 2016 – Arjan Martins)

 

A diáspora africana é um evento social, cultural e histórico que ocorreu advindo das invasões dos reinos africanos pelos europeus no século XV. Tal acontecimento é visto e nomeado de Maafa pela doutorada Marimba Ani (1994). Segundo a autora a Maafa é o processo de sequestro e cárcere físico e mental da população negra africana, além do surgimento forçado da afrodiáspora. O sentido de Maafa dialoga diretamente com a noção de Epistemicídio, termo utilizado pela filosofa Sueli Carneiro (2005), para analisar os efeitos da colonização europeia branca no controle de produção e reprodução da vida através dos dispositivos de racialidade de biopoder que atuam em nossa sociedade.

Tanto Maafa quanto Epistemicídio são noções que disputam, tensionam e narram o quanto as formas de dominação foram danosas nos processos de autoestima, existência e educação dos povos vítimas do colonialismo europeu no continente africano. Ambas as noções convergem em relatar um mesmo processo: o de pôr fim aos saberes não-hegemônicos. Nessa perspectiva o afrofuturismo formula um entendimento de que o sequestro, humilhação, escravização, genocídio, epistemicídio e Maafa são configuradores de uma catástrofe, uma catástrofe particularmente negra e afrodiaspórica. Uma catástrofe do atlântico negro: “À catástrofe é um acontecer, cujas implicações, espacialidades e temporalidades são bastante complexas” (GOMES; LEAL, 2020, p. 33).

Igor Lage e Nuno Manna (2019) apontam que a apreensão da catástrofe como uma experiência temporal atordoada em colapso, que ao contrário do sentido de crise, não possui em si um horizonte de resolução. Ou seja, para os autores a catástrofe é uma força que coloca em ruptura a estrutura temporal tradicional (passado, presente e futuro) pois é vista muito mais do que uma turbulência ou instabilidade, e sim como um dano catastrófico e aparentemente, eterno.

A catástrofe negra foi um evento que escapou ao domínio de um grupo humano (no caso os seres africanos), sobrepujando sua capacidade econômica, cultural ou mental, como efeito colateral, criou uma série de rupturas, oposições e distinções entre o antes e o depois. Uma experiência temporal do colapso em terras africanas, que pode ser comparada a um descarrilhamento de um trem, do qual a população negra foi tirada do seu centro civilizacional.Portanto, para lidar com as estruturas catastróficas enquanto categoria, se exige uma postura através da imaginação e de gestos epistêmicos peculiares.

Desta forma, compreendendo a origem e noção que a diáspora africana tem seu lugar nas transformações históricas e culturais, entendemos que a noção de migrações defendida por Martín-Barbero abre brechas para compreender a própria diáspora africana como uma outra geopolítica possível, afinal “Identidade é falar das migrações e mobilidades, de redes e de fluxos, de instantaneidade e de fluidez” (MARTÍN- BARBERO, 2009, p. 61). Portanto, transformações culturais com a dinamização dos fluxos migratórios seculares podem ser reivindicadas por corpos negros na contemporaneidade, através das fabulações críticas e afrofabulações com a intenção de preencher e/ou fissurar ausências históricas de imagens negras.

O ato de fabular na perspectiva de Saidiya Hartman (2020) vai mais além do que as nuances de representação, que segundo a autora, tendem a imobilizar e fixar os sujeitos em categorias que os classificam e os submetem. Segundo Hartman o sujeito deve permanecer estranho, infamiliar e, por isso mesmo, inquietante. A fabulação critica para Hartman é um método que busca dá conta “de recuperar o que permanece adormecido – a aderência ou reivindicação de suas vidas no presente – sem cometer mais violência em meu próprio ato de narração” (2020, p.15). Indo mais além do que (re)contar as violências coloniais registradas em arquivos, livros e documentos. A autora aqui busca traçar um caminho analítico de narrar as histórias brutalmente apagadas pelo Epistemicidio e pela Maafa. A fabulação critica busca através da sua escrita ficcional tensionar e perturbar as estruturas e disposições do poder, ao promover através do sensível “contar uma história impossível quanto amplificar a impossibilidade de que seja contada” (HARTMAN, 2020, p.28).

Pensar a fabulação critica de Saidiya Hartman abre espaços e perspectivas para se pensar as articulações em torno das afrofabulações, que aqui recuperada justamente para se trabalhar a ideia de como corpos negros emergidos no processo da diáspora africana podem articular e disputar identidades pelo processo de especulação— “comprados e vendidos, mortos e esquartejados, garantidos e securitizados, usados, impregnados, abortados, descartados” (NYONG’O, 2018, p. 80) — para sujeitos que especulam. Assim, “os corpos que foram especulados tornaram corpos especulativos” (NYONG’O, 2018, p. 80). É na disputa do imaginário, das fabulações, dos futuros possíveis, que ocorrem as transformações das sensibilidades afrodiásporicas. Trazendo essa linha de pensamento para o debate aqui nesse texto, a afrofabulação operando no contexto geopolítico da diáspora africana, diz respeito a processos e fluxos que não se limitam a fronteiras, países e continentes e sim pela presença de corpos negros e como a catástrofe do atlântico negro serve de fio condutor para compreender as lacunas e brechas deixadas no campo da imaginação, quando se trata de fabular em torno de pessoas negras.

Segundo Kabral (2018), as ficções fantástica e científica hegemonicamente obedecem a uma estrutura cristalizada em que as mesmas histórias são reiteradas pelos mesmos personagens de cor, gênero e orientação sexual, abalizada nos mesmos imaginários, mitologias e cosmovisões. “Nós precisamos de imagens do amanhã; e nosso povo precisa mais do que a maioria. Só tendo imagens nítidas e vitais das muitas alternativas, boas e ruins, de onde se pode ir, teremos qualquer controle sobre a maneira de como chegaremos lá” (DELANY apud KABRAL, 2018 s/p). Dessa forma, a afrofabulação surge como força de criação de narrativas afro– inspiradas em contextos afrodiasporicos com a possibilidade de fabular, imaginar, recriar o passado, transformar o presente e projetar um futuro através da ótica social afrodiaspórica.

Neste cenário, Nyong’o (2018, p. 209-210) questiona: “poderia uma poética da afrofabulação suplementar, ou mesmo suplantar, a política da representação?” . Desta forma, sua perspectiva crítica das artes negras se constrói como uma “busca de ferramentas e técnicas para pensar contra a representação – nos sentidos políticos e estéticos do termo”, a favor de um processo que o autor vem chamando de “afrofabulação” (NYONG’O, 2018, p. 210, tradução nossa).

Para Nyong’o, os processos de especulação mostram-se especialmente pertinentes para as artes negras porque os corpos negros passam de objetos de especulação para sujeitos que especulam. Tal virada de chave é importante, pois faz perceber que no campo do imaginário especulativo, existem disputas, tensões, rasuras, articulações e brechas para se promover outros olhares, pensamentos e sentidos que giram em torno de corpos negros, negritudes, negridades e afins. Essas outras possibilidades recaem na noção do indivíduo negro não fixado, mas sempre em relação. Ou seja, questões do tempo e espaço podem lidas e encaradas fora dos padrões euromodernos. É justamente nesse outro tempo e espaço possível que os afrofuturos apontam, indicam caminhos de sobrevivências para a negritude colocando em disputas uma série de afrofuturismos possíveis.

 

REFERÊNCIAS

ANI, Marimba. Yurugu: An African-Centered Critique of European Cultural Thought and Behavior. Trenton: África World Press, 1994.

CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.

GOMES, Itania; LEAL, Bruno. Catástrofe como figura de historicidade: um gesto conceitual, metodológico e político de instabilização do tempo. MAIA, Jussara; BERTOL, Rachel; VALLE, Flávio; MANNA, Nuno (orgs). Catástrofes e Crises do Tempo. Belo Horizonte: PPGCOM/ UFMG, 2020, v.1, p. 31-53.

HARTMAN, S. (2020). Vênus em dois atos. Eco-pós, v. 23, n. 3, p.12-33.

KABRAL, Fabio. AFROFUTURISMO: Ensaios sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo. In: LIMA, Emanuel; SANTOS, Fernanda; NAKASHIMA, Henry Albert; TEDESCHI, Losandro. Ensaios Sobre Racismos. 1. ed. São Paulo: Balão Editorial, p. 104- 115, 2018.

LAGE, Igor; MANNA, Nuno. Uma “catástrofe do tempo”: narrativa e historicidade pelas Vozes de Tchernóbil. Galáxia, São Paulo, Dossiê Especial, p. 34-46, 2019.

MARTÍN BARBERO, Jesús. Tecnicidades, identidades, alteridades: Mudanças e opacidades da comunicação no novo século. In: Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p. 51- 79.

NYONG’O, Tavia. Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life. New York: NYU Press, 2018.