Perversas, hipersexualizadas, histéricas. Essas são algumas das formas recorrentes de representação das bruxas na cinematografia ocidental. Essas representações disputam o significado de feminilidade, e por isso percorremos um trajeto que mostrasse a relação da bruxa com a mulher ocidental.

Para fazermos a análise, partimos dos filmes Elvira, a Rainha das Trevas (1988), As Bruxas de Salém (1996) e A Bruxa (2016), tensionando-os com os discursos do feminismo radical, feminismo negro, feminismo liberal, e da bruxaria tradicional, sobre os aspectos da feminilidade e sexualidade da mulher.

Ao utilizarmos o regime de verdade de Michel Foucault e o mapa das mediações de Jesús Martín-Barbero, conseguimos tensionar as disputas das representações acerca da feminilidade no ocidente a partir da análise dos filmes em diálogo com suas matrizes culturais.

Em Elvira, a Rainha das Trevas (1988), temos uma personagem hipersexualizada, que aparece com a defesa da liberdade sexual. Esse discurso está em sintonia com aquele do feminismo liberal e do contrato social. Mas, conforme Foucault, esse discurso de liberdade sexual é produzido pelas mesmas estruturas de poder que produzem a repressão sexual, portanto faz parte do jogo do patriarcado, de seus interesses, e não é tão revolucionário quanto parece ser.

elvira 2

Figura 1: Elvira, a Rainha das Trevas

Como matriz cultural de Elvira, a Rainha das Trevas (1988), aciono a animação Branca de Neve e os Sete Anões (1938). Faço o movimento de associar Elvira com a madrasta da Branca de Neve para mostrar como a representação da bruxa manipuladora, perversa, é justificada pelo vínculo com a sexualidade dela. Tanto Elvira quanto a madrasta são vaidosas, querem ser as mais atraentes.

elvira e o espelho

Figura 2: Elvira, a Rainha das Trevas

madrasta branca de neve

Figura 3: Madrasta da Branca de Neve e os Sete Anões

Elvira aciona também Betty Boop, desenho animado criado por volta de 1930, pela relação com a hipersexualização da personagem. Betty Boop aparece com roupa colada, cinta-liga em evidência e batom vermelho, o que para época de lançamento foi considerado nocivo. Mas isso não impediu que a personagem Betty Boop estivesse presente nos quadrinhos, na televisão e nos longas-metragens. Pois, além da aproximação estética com Elvira, Betty Boop pode carregar o discurso de ser subversiva por retratar a sexualidade da mulher de forma mais evidente. Porém, conforme Foucault, é por causa desse discurso que a sexualidade ganha valor mercantil.

Outro movimento que faço é o de associar Elvira com Branca de Neve. A princesa é retratada como benevolente e inocente, mas é pela ausência aparente de um dizer sobre o sexo que se faz também o discurso sobre ele, consoante Foucault. E, mesmo assim, é possível perceber o apelo ao discurso sexual em relação à Branca de Neve pela descrição que é feita dela: branca como a neve, cabelos negros como a noite e boca vermelha como sangue.

Além do mais, o visual inicial de Branca de Neve foi inspirado na personagem Betty Boop. Mas Walt Disney descartou essa versão porque não queria que a princesa ganhasse conotação sexual, como Betty Boop, o que significava aparecer mostrando os tornozelos e fazendo biquinho.

As escolhas por retratar a Branca de Neve que não quer se vingar da madrasta – o que diverge do conto original dos irmãos Grimm – e que não mostra os tornozelos e nem faz biquinho – como  a versão inspirada em Betty Boop – dizem da forma de eleger um tipo de feminilidade a ser retratado hegemonicamente.

Mostro então a sequência: Betty Boop, primeira versão de Branca de Neve, Branca de Neve escolhida. O objetivo é chamar atenção para as matrizes culturais nas formas de retratar a bruxa/mulher relacionada à sexualidade presentes em Elvira.

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Figura 4: Betty Boop

branca de neve betty boop

Figura 5: Primeira versão de Branca de Neve

branca de neve camponesa

Figura 6: Branca de Neve escolhida

Elvira, a Rainha das Trevas (1988) pode ser analisada ainda por meio do gênero comédia associado à produção. Proponho então o diálogo da comicidade com a série televisa A Feiticeira (1964-1972). Chamo atenção para a representação da bruxa de forma cômica, como se fosse algo para não ser levado a sério, posto no lugar de fantasia, como uma forma de não existência.

Já em As Bruxas de Salém (1996), destaco a representação da histerização sobre o corpo feminino. O filme, denominado como drama, é baseado no acontecimento de Caça às Bruxas em Salém no ano de 1962. A cena inicial do longa-metragem é a de mulheres dançando nuas na floresta, em transe.

Como matriz cultural, exponho a pintura a óleo Un Leçon Clinique à La Salpêtrière (1887), que retrata uma mulher sendo hipnotizada no Hospital Salpêtrière, em Paris, como demonstração do que seria caso de histeria feminina. Acontecimentos como desmaios, paralisias e tremores eram considerados histeria. Quando uma mulher apresentava algumas dessas características dizia-se que ela estava em uma encenação teatral, e a julgavam como manipuladora e dissimulada.

THE CRUCIBLE, Winona Ryder, Charlayne Woodard, 1996, TM & Copyright (c) 20th Century Fox Film Corp. All rights reserved.

Figura 7: As Bruxas de Salém (1996) | THE CRUCIBLE, Winona Ryder, Charlayne Woodard, 1996, TM & Copyright (c) 20th Century Fox Film Corp. All rights reserved.

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Figura 8: Un Leçon Clinique à La Salpêtrière – pintura de André Broillet

A pintura de André Broillet é uma das primeiras formas de visualização e representação do que foi denominado como doença da histeria no século 19, com a indicação de que o corpo da mulher precisava ser controlado por estar associado ao útero. E por isso serve para entender a primeira cena de As Bruxas de Salém (1996), na qual mulheres aparecem perdendo o controle do corpo, ao não conseguirem sair do transe.

No decorrer da trama do filme, as personagens que estavam dançando nuas na floresta são convocadas a depor no tribunal de Salém. Quando os representantes do clero fizeram perguntas que as jovens não souberam responder, elas fingiram estar vendo o demônio, ficaram olhando para cima, desmaiaram. Para essa cena representando o que seria o delírio feminino, convoco outra imagem do arquivo do Hospital Salpêtrière.

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Figura 9: As Bruxas de Salém

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Figura 10: Registro de caso considerado como histeria

As personagens afirmaram que estavam vendo o demônio porque essa era a forma de conseguir o perdão perante o clero, confessaram o que seria o pecado para obter a salvação. Esse movimento pode ser interpretado por meio da noção de regime de verdade de Foucault, já que foi o discurso de repressão sexual, vinculado à ideia de pecado, por estarem se dando ao prazer da libido, que levou as jovens a confessarem algo que nem mesmo aconteceu.

E, ainda conforme Foucault, por mais que exista o discurso de sexo reprimido, não se deixa de falar sobre o tema, ainda que haja uma restrição na linguagem. É isso que podemos observar nos questionamentos e na confissão religiosa no filme, a exemplo de quando um representante da lei pergunta se tais atos como a dança são permitidos na cidade.

Aproximo o discurso presente em As Bruxas de Salém (1996) do feminismo radical, pela relação de entender o aspecto biológico da mulher, o útero, como algo que a fragiliza e a torna passível de dominação masculina, conforme a rejeição da maternidade por parte da feminista radical Shulamith Firestone, em The Dialectic of Sex.

Procuro contrapor o que representa questões como a maternidade na bruxaria (no matriarcado) e no patriarcado para chamar atenção de que são os significados atribuídos ao corpo (que não é só físico) da mulher que podem torná-la sinônimo de frágil, e não simplesmente pela relação biológica, por ter um útero.

Por último, analiso o filme A Bruxa (2016), cuja trama se passa em 1960, na Nova Inglaterra, sobre a história de um casal cristão e seus cinco filhos que passam a morar perto de uma floresta. Uma das primeiras cenas é a de uma floresta em aparente silêncio, seguida do sumiço do irmão caçula da personagem Thomasin, enquanto esta brincava com ele perto da floresta.

Aciono como matriz cultural A Bruxa de Blair (1999) pela associação da floresta ao mistério, ao perigo da bruxa, e também pela floresta funcionar como linguagem visual cinematográfica para causar suspense na trama das produções.  Sinalizo que apesar do longa-metragem A Bruxa (2016) ser classificado como terror, o que predomina no produto é o suspense.

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Figura 11: A Bruxa

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Figura 12: A Bruxa de Blair (1999)

Ao longo da trama do filme A Bruxa (1999), os integrantes da família de Thomasin morrem, restando apenas ela. A personagem principal aparece desacordada, e na cena seguinte resolve fazer o pacto com o diabo, personificado na figura do bode. Nessa cena, Thomasin está com o corpo cheio de sangue, e por isso chamo atenção da possibilidade do pacto ser entendido como a iniciação sexual da protagonista.

Depois do pacto com o diabo/bode, Thomasin segue nua para a floresta, onde encontra mulheres nuas, cantando e flutuando, momento no qual o filme acaba. E essa última cena pode ser interpretada como o ápice sexual, o orgasmo da personagem, pois foi preciso que os membros da família morressem para que ela pudesse entrar em contato com o sexo sem o discurso de pecado e regeneração que o envolvia.

O filme A Bruxa (2016) aponta para a feminilidade/sexualidade como terror, por retratá-la como algo desconhecido, mas quando Thomasin se depara com mulheres dançando, celebrando o prazer sexual associado à religião, a produção apresenta o discurso da feminilidade/sexualidade da bruxaria tradicional.

Quando todos os membros da família de Thomasin morrem, ela nasce para sexualidade, assim como a face anciã da deusa morre e surge depois como donzela, como a lua minguante desaparece para surgir a lua nova. Pois na bruxaria, a morte representa o recomeço, e é entendida como integrante do ciclo da vida, o que pode ser percebido na natureza. No final do filme, ainda é possível perceber a junção de feminilidade com sexualidade, por elas representarem o mesmo movimento de iniciação da vida de uma mulher, além da relação da sexualidade com a religiosidade, presente no discurso da bruxaria.

Na análise dos filmes, relacionados às suas matrizes culturais, percebemos a frequência de alguns dos discursos mais comuns sobre a mulher e a sua feminilidade. Em Elvira, a Rainha das Trevas (1988), constatamos a representação da hipersexualização da bruxa/mulher, aliada ao discurso de empoderamento sexual, o que aciona a personagem Betty Boop; assim como a manifestação da sexualidade da bruxa/ mulher aliada à perversidade e à manipulação, o que se assemelha à madrasta da Branca de Neve.

Já em As Bruxas de Salém (1996), observamos, sobretudo, a representação do processo de histerização em relação à mulher, o que aciona os registros feitos no final do século 19 no Hospital Salpêtrière, em Paris. E, por fim, refletimos como o longa-metragem A Bruxa (2016), além de acionar A Bruxa de Blair (1999), por representar a feminilidade como terror ao longo da trama, relaciona-se com a noção de feminilidade/sexualidade da bruxaria tradicional no final da história.

Buscamos mostrar como a temática da bruxaria é cenário de disputa entre a comunicação, a cultura e a política na busca pela representação hegemônica da feminilidade e da sexualidade da mulher ocidental. Os filmes analisados e suas matrizes culturais servem como recorte analítico para percebermos a recorrência de discursos como a perversidade, a histerização e a hipersexualização sobre o corpo da bruxa, da mulher.

Referências

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2009.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Pistas para Entre-ver Meios e Mediações. In: Dos Meios às Mediações: Comunicação, Cultura e Hegemonia. 4 ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.

VALADARES, Aline. Discursos acerca da feminilidade: Uma análise das disputas dos segmentos do feminismo e da bruxaria. Monografia. Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.