Abril Indígena: Modos Indígenas de fazer Comunicação

Autodeclarando a continuidade dos 519 anos de resistência, o movimento indígena chega a uma culminância histórica de visibilidade e conquistas estratégicas. A mobilização nacional Abril Indígena 2019 demonstrou a capacidade de articulação dos povos originários entre si e com segmentos aliados da sociedade nacional. O Abril Indígena é difundido principalmente pela rede de coletivos de comunicadores indígenas composta por diversos povos, sendo um momento de intensa distribuição de campanhas em cards, podcasts e vídeos nas redes sociais, principalmente. Visitaremos brevemente nesse texto duas iniciativas: a campanha de cards “Eu tô aqui pensando” e o podcast “Vozes do ATL”.

A Comunicação Indígena foi historicamente construída para articular os povos entre si, enquanto estratégia de sobrevivência de modos de vida com aspectos em comum, frente o Estado e a insegurança jurídica do usufruto de seu território. O que não quer dizer que a produção para o público mais amplo não ocorra. Especialmente na última edição do Abril Indígena, ficou evidente a consolidação do campo enquanto demarcado pelos povos indígenas, num processo de abertura para construção de vozes comunicacionais diversas.

A realização do Acampamento Terra Livre (ATL) – Encontro Nacional em Defesa dos Direitos Indígenas é pauta durante todo o mês de abril nas mídias indígenas e indigenistas. A assembleia anual dos povos indígenas engaja os comunicadores e comunicadoras indígenas da sua mobilização até a produção de boletins e documentários.

Na edição de 2019, uma das ações voltadas para engajamento do público não-indígena foi a campanha de cards distribuída nas redes sociais pelos coletivos e perfis pessoais de ativistas indígenas “Tô aqui pensando”. Os cards eram imagens de ativistas indígenas contendo a mensagem “Tô aqui pensando”. O card foi postado com a legenda:

“Eu tô aqui pensando, onde está o tanto de gente que usou cocar no carnaval para homenagear povo indígena? Será que vai estar com nós na próxima semana na Mobilização nacional Indígena em Brasília?”

A mensagem faz referência à campanha “Índio não é fantasia”, que evidencia a perspectiva desses povos sobre os usos das representações indígenas por não-indígenas em um contexto de forte repressão e insegurança jurídica. O debate revive a cada carnaval, e aqui temos mais uma expressão do processo de autodeterminação dos povos indígenas e das formas como os mesmos não se veem representados.

A cobertura do XV ATL, ocorrido entre 24 e 26 de abril, foi realizada majoritariamente por jovens comunicadoras e comunicadores indígenas, com a produção de diversas matérias, cobertura fotográfica e em vídeo. A mobilização é considerada uma das maiores do mundo, e é impulsionada pela Articulação Indígena do Brasil (Apib), movimentando mais de 4.000 lideranças indígenas de 305 etnias, espalhadas pelo território brasileiro.

O podcast Vozes do ATL[1] é o boletim em áudio do evento distribuído através da plataforma SoundCloud. A produção do boletim é coordenada por um grupo de comunicadores, entre eles Lucas Matos, do povo Tariano, membro da Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, e é composta por diferentes comunicadores e comunicadoras indígenas que constroem coletivamente os roteiros. As atividades desenvolvidas pela equipe constituem-se da cobertura dos eventos, coleta depoimentos, registros em áudio, edição dos boletins e sua distribuição. Cada boletim relata os acontecimentos do dia de forma compreensiva, com forte teor formativo, orientado principalmente a oferecer conhecimento facilitado sobre as demandas do movimento, e suas implicações frente ao Estado, para os parentes em suas aldeias.

As duas iniciativas são expressões do processo de apropriação do aparato comunicacional, no contexto das redes e das instâncias de participação, tendo como premissa a disputa por uma história própria, por um modo de informar. Um dos instrumentais da sociedade nacional apropriado pelos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, a Comunicação é ferramenta de participação política, articulação dentro das aldeias e entre as comunidades, fruição de expressões artísticas e práticas cosmológicas, bem como para conscientizar a sociedade nacional acerca da importância da aplicação dos direitos territoriais e culturais desses segmentos.

A Comunicação Indígena possui como pontos de partida a defesa dos modos de vida dos 305 povos originários e a demarcação de seus territórios. A ênfase na produção audiovisual, programas de rádio e podcasts fundamenta-se nas tradições orais dos modos de saber e transmitir dos povos indígenas, em que a palavra dita tem lugar central nas redes de sociabilidade, dentro e fora das aldeias. A palavra falada é material, instrumento de luta. Esta produção é amplamente difundida pelas redes sociais para o público não-indígena, mas é produzida e distribuída tendo como público-alvo outros indígenas, sendo orientado para conscientizar os parentes sobre as questões políticas e econômicas que envolvem a aplicação dos direitos originários.

Os modos de operar a Comunicação dos Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais são diversos, e possuem aplicações de diferentes proporções. Ao mesmo tempo, esses modos possuem aspectos em comum; um deles é o uso da Comunicação como instrumento de articulação entre si e com os outros. Certamente podemos aprender muito sobre nossos fazeres em Comunicação prestando atenção às formas indígenas e tradicionais de operar a Comunicação na conjuntura atual.

 

[1] Ouça aqui o Boletim ATL: https://soundcloud.com/user-618715233/vozes-do-atl?fbclid=IwAR2lXq_segWY28K37fGbT769jcO_G0Ye2pjD1vooCgmtVJOm2aSi76blBhw